NONA, UM ROMANCE MINIMALISTA
Edmílson Caminha
O primeiro período do romance Nona, de Erika Mattos da Veiga (Rio de Janeiro : 7 Letras, 2010), tem, exatamente, 115 linhas. Donde se pode concluir que, na obra, a linguagem e o estilo interessam mais do que a ação e a história, ou, por outra, o que contar importa menos do que como fazê-lo. Até porque não há muito o que contar: ao longo das 168 páginas, os personagens são poucos – a menina (depois mulher), de quem nunca se saberá o “nome italiano”; a boneca Berenice; a negra Dindinha; a mãe reclusa em um quarto; o pai distante; o ilhéu motorista de táxi e dois empregados de um hotel. Nas profundezas do abismo interior em que luta e sofre a menina–mulher, empreende a autora um belo e impressionante mergulho raramente vivido na literatura brasileira, o que promove Nona à linhagem consagradora em que se inscrevem, por exemplo, A menina morta, de Cornélio Penna; Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, e A casa da paixão, de Nélida Piñon. O que, convenhamos, não é pouco, para uma escritora que chega apenas ao segundo romance, depois do já excelente Ressaibo, saído em 2007.
Diferentemente dos ficcionistas que buscam o grandioso, o monumental, Erika concentra-se na minúcia, no detalhe, na descrição minimalista de seres e objetos, formas e cores. Lembra o cineasta vietnamita Tran Anh Hung, diretor da obra-prima O cheiro da papaia verde, ou os montanhistas praticantes do bouldering, que não escalam os 8.844 metros do Everest, mas blocos de pedra (boulders, em inglês) com a altura de dois andares, praticamente lisos, em que não há mais do que fendas rasas e protuberâncias mínimas. “Aproximando-se o mais possível do espelho pregado à parede, removeu, com o auxílio de pequenos chumaços de algodão, os excessos da maquiagem fugindo aos limites dos olhos, reforçou, em preto, o contorno desenhado pelo lápis castanho, desabrochou, em rímel, os cílios recolhidos por força das horas de sono induzido, reavivou, por fim, o discreto tom acobreado da sombra sobre a superfície retrátil das pálpebras.” Dessa maneira, compõe Erika, com paciência e vagar, uma criatura que vive dramaticamente a condição humana, do sofrimento de menina ao desespero de mulher, do sobrado que a sufoca à ilha onde se fala castelhano, em que acabarão por encontrá-la como sobrevivente de si mesma.
Chave do romance, a parte 9 – que assim não se nomeia, como as outras, mas é, significativamente, a “nona” –, faz a negra, personagem–título, chocar a menina ao revelar-lhe a existência de um outro mundo além dos domínios do sobrado, pela simples constatação de que havia flamboyants diferentes: “Por isso, naquela manhã, quando Dindinha lhe estendeu a mão carregada de pétalas amarelas, idênticas às cor de laranja que conhecia, algo nela se partiu.” Três capítulos à frente, as páginas com o pesadelo de quem se afoga estão, sem dúvida, entre os melhores momentos do romance brasileiro contemporâneo, pela força humana, pela competência narrativa e pela grandeza literária.
Por fim, Erika Mattos da Veiga prova saber trabalhar o tempo, essa traiçoeira armadilha em que tantos ficcionistas se deixam apanhar. Maneja-o com segurança e maestria, como no momento em que um motorista conduz a mulher pela ilha a que acabou de chegar: “Via-se mais uma vez refletida no quadrilátero do espelho na caixinha de guardar o batom, quando encontrou, sem explicação, os olhos verdes da menina indo-e-vindo no balanço que era o táxi. Assustada, baixou bruscamente a tampa, esboçou com o rosto um trejeito, tornou mais duro o semblante, mas, ainda que se esforçasse, era ela a menina do balanço, indo-e-vindo parada no espelho trancado no escuro da pequena caixa.” Do táxi ao sobrado em poucas linhas, do presente ao passado em questão de segundos. E a menina presa para sempre no segredo da caixinha, nas silenciosas trevas do espelho, a Nona a empurrar o balanço em que o tempo vai e volta, vai e volta, vai e volta, para além da vida e da morte...