Confesso que me incomoda falar sobre o Piauí apelando para os seus pontos cardeais. Eu nunca havia feito isso antes. O Piauí, para mim, sempre foi um estado de surpresas, como as fascinantes pinturas rupestres em São Raimundo Nonato ou a Feira Agropecuária de Corrente, carnaval de Floriano, Semana Santa de Oeiras, azulejos da terra de da Costa e Silva, lendas de Teresina, mangas de Altos, carne-de-sol de Campo Maior, Batalha do Jenipapo, rios de Barras, Cachoeira do Urubu, opalas de Pedro II, Parque Nacional de Sete Cidades, bordados de Buriti dos Lopes, Porto das Barcas, delta do rio Parnaíba... Tem mais? Tem! E muito! Essas exuberâncias não me alertaram para a região onde estão instaladas. Por isso, falar de norte e de sul, assim como se fossem duas partes distintas em forma e conteúdo, não me proporciona um grande prazer.
Infelizmente, para entender a polêmica tese de criação do Estado do Gurgueia, tive que apelar para a geografia piauiense. Comentam aos quatro cantos as diferenças entre o norte e o sul, com argumentos que beiram o fanatismo. A TV Cidade Verde tornou o debate popular, ao levar para as suas telas expoentes defensores das partes. Fiquei ali, pensando: “preciso me posicionar”. Ou não preciso?
Comecei a perceber que os maiores interessados na divisão do Piauí são os políticos ou grupos econômicos interessados naquelas terras férteis. Em seus argumentos, as partes apelam para fundos de participação, alegam falta de políticas públicas, clamam ingerência governamental na área, comentam a densidade demográfica e a arrecadação municipal, tudo fundamentado em números que eu nem sequer sabia existirem. Parece que financiam a base estatística em defesa do Estado do Gurgueia, como se em preparo para um embate que se fará popular em pouco tempo.
De repente, recebo um E-mail enviado pela equipe que defende a divisão e que, ao final, me chama para conhecer o futuro Estado do Gurgueia no site www.gurgueia.org.br. O mote para o E-mail foi um artigo do preparadíssimo, intelectual e médico Luiz Ayrton, diretor do Instituto de Mama do Piauí, publicado no jornal Meio Norte de 9 de janeiro de 2012, intitulado “Mamografia no sul do estado”.
Excelente e oportuno o artigo, especialmente quando denuncia a ineficiência do autoexame de mama, que leva muitas mulheres a desconsiderarem os impalpáveis tumores em fases iniciais. Mais adiante, o texto encerra abordando a ineficácia da região sul do Estado, por não possuir aparelhagem suficiente para alcançar mulheres dos mais distantes rincões, citando Floriano e Bom Jesus como dois exemplos de apatia – as duas cidades, segundo Luiz Ayrton, possuem aparelhos para identificar precoces tumores, mas não os usam adequadamente.
Novamente, me vejo envolto na polêmica entre o sul e o norte, como se fosse a Guerra da Secessão americana. Paulistas e cariocas consideram norte o que está acima da Bahia. Para nossa discussão, não sei o que considerar. Sinto-me obrigado, no entanto, a entender que o sul do Piauí é formado por terras a perder de vista, enquanto o norte se estende em meio a agremiações de povoados formados a cada 40 quilômetros percorridos. É isso? Pode não ser, mas é assim que eu vejo. E em meio a essa imensidão que é o Estado do Piauí estão os belos atrativos de que já me referi acima. Mas, infelizmente, tenho que aceitar a referência entre norte e sul, para entender e me fazer entender.
Observo, de forma empírica porque não sou especialista nem possuo dados, que a densidade demográfica no sul do Estado é bem menor do que na região norte. Acredito que isso se deva ao fato de que o litoral, notadamente Parnaíba, marcou por muitos anos as relações comerciais e culturais do Piauí com a Europa e outros destinos nacionais, como porto fluvial e marítimo. Por lá embarcaram muitos piauienses em busca de dias melhores, para lutar na Guerra do Paraguai ou apenas para estudar em Lisboa, Recife ou Rio de Janeiro. Muitas mercadorias também entraram no Piauí por Parnaíba, enquanto por lá exportávamos matéria-prima rumo aos destinos transformadores. Essa observação me levou a entender que os olhos econômicos, culturais e tecnológicos se voltaram para a região norte por conta de seu intenso fluxo de pessoas, gerando pontos de apoio nas estradas que acabaram por culminar em povoados e depois cidades, elevando assim a densidade demográfica, em detrimento da região sul. Outro aspecto é que o deslocamento da capital de Oeiras para Teresina tomou o caminho do litoral, e não apontou para Corrente, por exemplo, ou Bom Jesus, que nada de proveitoso tinham aos olhos dos antigos administradores da Província. Ao adentrar o interior, ficavam cada vez mais próximas as dificuldades e mais distantes e complicadas as relações comerciais. O Piauí, enfim, acabou por apresentar essa forma, digamos assim, menos favorecida para o sul e mais investida para o norte.
É sabido que o sul é detentor de grandes latifúndios, vastas extensões de terras concentradas nas mãos de poucos, muitas improdutivas, ou melhor, com investimentos nulos. Tem-se notícia de investidores externos adquirindo grandes extensões de terras para implantação de seus empreendimentos, o que vem transformando o sul numa grande zona privada. Chego a pensar que uma reforma agrária de impacto, que colida com esse pedaço da população piauiense que detém essas terras, resolveria parte do problema. Difícil é aceitarem. Por coincidência, são eles próprios os que demonstram ser favoráveis à criação do Gurgueia, um estado que já nasceria com grandes latifundiários e fortes grupos políticos e econômicos para perpetuar as mesmas ações que entravam o Piauí há séculos. Penso até nos municípios que precisariam ser criados nessas terras, com prefeitos apadrinhados e vereadores fieis aos seus líderes. Arrepio-me ao pensar nisso!
A falta de equipamentos para prevenção do câncer de mama, que pudessem estar mais próximos das mulheres distantes, referida no artigo do médico Luiz Ayrton, não é suficiente para justificar a divisão do Piauí, como querem nos fazer crer os simpatizantes do Estado do Gurgueia, ao nos enviarem em mala direta de E-mail o artigo citado. O que nos falta é romper com as amarras das dinastias políticas que vêm, ao longo do tempo, administrando o Estado; o que precisamos é colocar no poder dirigentes profissionais isentos de partidarismos e conchavos eleitoreiros de oportunidade. Digo profissionais porque cheguei à conclusão de que políticos não sabem gerir a coisa pública, mas apenas escorregar por corredores e salas para arquitetar as próximas eleições que os perpetuarão no poder. E os que apelam para a criação do Estado do Gurgueia não são diferentes em forma, conteúdo e desejo.
Por essas razões, sou contra a divisão do Piauí, um estado belo até por suas formas inusitadas. Tenho convicção de que o seu potencial é grande, a sua economia é forte, as suas terras são férteis, a sua cultura é singular e a sua forma é indivisível.