Era uma manhã ensolarada, aquele domingo de 25 de junho de 1876. O verão havia sido aberto oficialmente dois dias antes. O general George Armstrong Custer, e mais 611 homens da Sétima Cavalaria dos Estados Unidos, se movimentava sorrateiramente pelos bancos de areia de um riacho, em busca dos derradeiros silvícolas rebeldes. Sem dar-se conta do que o aguardava, uma surpreendente ação de 3 mil índios das tribos Sioux e Cheyenne, liderados por Cavalo Doido (Crazy Horse) e Touro Sentado (Sitting Bull), aniquilou o general e seu destacamento, naquela que ficou consagrada como a Batalha de Little Bighorn. Nenhum soldado americano sobreviveu para contar a história, e apenas versões indígenas registraram o massacre daquele verão das planícies do estado de Montana.
Se houvesse um sobrevivente branco, certamente a história teria outros desdobramentos, destacando o heroísmo das vítimas e a bravura do general, que pretendia concorrer a uma vaga à presidência dos Estados Unidos. A versão indígena não poderia ser levada em conta, pois desprovia de credibilidade. Como, então, contar o que realmente ocorreu naquela manhã? Em quais detalhes os historiadores se debruçaram para descrever a batalha? Os que chegaram após o massacre puderam avaliar a posição dos corpos, dos cavalos, rotas de fuga, vegetação e munição em um cenário nada animador. Fizeram inclusive minucioso estudo de restos de alimentos nos estômagos de soldados e cavalos, para avaliar aspectos nutricionais e entender melhor como havia sido aquele dia. Mas o homem branco teve que engolir a versão indígena. O verdadeiro episódio ninguém jamais haverá de saber como foi.
O livro “O Piauí nas Lutas da Independência do Brasil”, escrito pelo Monsenhor Joaquim Chaves, traz em sua apresentação uma advertência bastante curiosa. Monsenhor Chaves adverte os possíveis colaboradores sobre contribuições baseadas em tradição oral, sem as respectivas comprovações. Diz ele: “O livro poderá ser melhorado com sua crítica. Mas por favor: que também ela venha acompanhada de documentação”. Monsenhor Chaves tem as suas razões, talvez em função das muitas versões que lhe chegam sem condições de comprovação de suas evidências escritas, com base apenas em tradição oral. “Afirmações gratuitas, baseadas em tradições ou lendas, não serão consideradas. Não confundamos História com ‘estória’”, conclui. Com esse raciocínio, o que seria da Batalha de Little Bighorn?
O historiador Haddock Lobo não considera a tradição oral uma fonte segura para os conhecimentos históricos. Em seu livro “História Universal”, ele afirma: “As principais fontes de informação a que recorrem, porém, os pesquisadores, na difícil tarefa de reviver o passado, incluem-se em duas categorias: os vestígios e os documentos”. Existem muitos estudos, como os que realizam pesquisadores da arqueologia bíblica, desprovidos desses vestígios históricos ou de documentos que comprovem a veracidade das informações contidas na Bíblia. O passado é escavado para exibir essas evidências, especialmente a versão hebraica dos primeiros livros, considerados o alicerce da cultura judaica e os precursores do futuro movimento cristão. Esses textos, sem dúvida, são documentos históricos válidos, por sua autenticidade, mas sem evidências que comprovem os seus conteúdos o pesquisador acaba se defrontando com uma pergunta crucial: como acreditar em um narrativas baseadas em tradições orais, se não há documentos ou evidências que comprovem o seu conteúdo? Monsenhor Chaves, com certeza, refutaria as informações de um evangelista que o procurasse para contar a experiência ao lado de Jesus...
Quando escrevi “Parabélum”, um romance que conta a história do assassinato do motorista Gregório, enveredei pela literatura de não-ficção, a “non-fiction novel” ou romance de não-ficção, lançada por Truman Capote através de seu livro “A sangue frio”. Vi-me diante das dificuldades que assombram qualquer pesquisador, que são as fontes. Ao contar a história de um bárbaro assassinato em uma cidadezinha do interior do estado do Kansas, chamada Holcomb, Capote descreve o dia a dia das pessoas, a paisagem, a rotina, as suas impressões sobre o que surgia à sua frente. Esteve frente à frente com os assassinos e passeou pelos arredores, dando conta de muitos detalhes que os seus olhos foram capazes de testemunhar. Será possível para a pesquisa histórica considerar as impressões que Capote teve, ao descrever Holcomb? Será que ele foi isento o suficiente para que o seu relato romanceado pudesse ser fiel ao fato histórico? Como saber se algum diálogo não foi recheado de sofismas apenas para se apresentar melhor aos leitores?
Parte dessas respostas encontrei em um trabalho que me foi enviado pelo amigo João Nildo, de autoria de Paul Sutermeister, em referência a Hayden White e sua teoria meta-histórica. O ponto básico é: haverá uma história límpida, desprovida de influência dos que a relatam?
Uma amiga, que segue à risca as orientações da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), me disse certa vez que meus livros não servem de referência a trabalhos científicos porque, além de não obedecerem às normas, são romanceados. E os romances são literatura de ficção e não podem, portanto, servir como fonte de pesquisa.
A maioria dos meus livros é baseada em fatos reais. Para recuperar a história do assassinato do motorista Gregório, no livro “Parabélum”, fiz uma pesquisa intensa, entrevistei pessoas que viveram à época do acidente, inclusive uma senhora com 103 anos de idade, moradora de Barras, que havia namorado Gregório. Fui aos documentos do Arquivo Público e visitei os locais por onde a história passou. O resultado foi um romance que não serve como referência histórica.
Realidade e ficção se misturam para reproduzir uma trama. Mas a ficção também tem o seu aspecto real, vívido. Quando a Batalha do Jenipapo ocorreu, narrada pela pesquisa criteriosa de Monsenhor Chaves, havia na redondeza dos campos de Campo Maior casebres onde pessoas levavam as suas vidas sem dar muita importância ao que ocorria, ou por indiferença ou por simples falta de informação. Se ao narrar a batalha eu disser que alguém tomava banho no riacho Jenipapo, estarei criando uma ficção que em nada altera o fato histórico, mas apenas serve de cenário para enriquecê-lo. Da mesma forma, existem autores que criam personagens para interagirem com personagens históricos e reforçar ideias através de diálogos, narrando pelos olhos da ficção a paisagem de uma época, os costumes, o urbanismo, o clima, a vegetação, a sociedade. “Parabélum” narra uma história montada a partir de pesquisas e entrevistas. Inicia com a fuga do tenente Florentino Cardoso, assassino de Gregório, e penetra em um Piauí de princípios do século XX, descrevendo costumes através de personagens criados para suprir as deficiências da informação.
Em “O turco e o cinzelador”, novamente realidade e ficção se entrelaçam para compor uma história de amor, ódio, dor e surpresas. O historiador e professor Fonseca Neto, hoje imortal da Academia Piauiense de Letras, foi quem me falou da história de Sebastião Mendes, um humilde artista que cinzelou as portas da Igreja de São Benedito. Descobri algumas citações sobre Sebastião Mendes na biografia de Higino Cunha, que o conheceu, no livro “Frei Serafim de Catânia”, de Elias Martins, e no livro “História de Teresina”, de Clodoaldo Freitas. A pesquisa me levou à segunda metade do século XIX, quando Frei Serafim chegou a Teresina a aceitou o desafio de construir um templo. Pela biografia consultada, pude descrever uma cidade ainda em formação, afetada pela invasão de retirantes da seca de 1877. Um personagem de ficção, chamado Elias Muleta, foi criado para denunciar as injustiças sociais da época. Outro, o professor Virgílio, questiona crenças e modelos educacionais. Ambos são ficção, mas em nada afetam a história porque são personagens inspirados em pessoas comuns, que estão nas ruas apregoando ideologias. Mas como se trata de um trabalho romanceado, com descrições ambientais e personagens que pouco interessam aos historiadores, não pode ser considerado fonte de referência.
Outro livro, “15:50”, trata de um crime que aconteceu no sul do Piauí, no final de 1990. Tive acesso ao processo, entrevistei mais de 50 pessoas que se envolveram direta e indiretamente, pesquisei jornais da época e montei uma história que conta o drama da assassina, nos instantes e nos anos que se seguiram à tragédia. É também, como os demais, baseado em fatos reais. O que sabem as pessoas a respeito desses assuntos? Como interpretariam as sequências ocorridas? Em seus despachos, estariam os juízes isentos de impressões pessoais acerca do crime? Os médicos que examinaram a assassina reproduziram em seus laudos uma verdade impossível de contestação? Os depoimentos que a adolescente prestou são peças verdadeiras frente aos distúrbios de sua mente conturbada? Onde está a verdade? Como contar um fato sem que a emoção se deixe dominar? O que é história e o que é ficção nas peças processuais? Mas como o livro tem sintomas romanescos, não pode ser considerado como referência.
O texto de Paul Sutermeister, que ajuda a pôr alguma luz no fim desse intrincado túnel, enfatiza que toda explanação histórica é retórica e poética por natureza. Hayden fez uma avaliação dos trabalhos de alguns historiadores e descobriu que havia outras mensagens por trás das narrativas que eles queriam comunicar, concluindo que o passado histórico foi um meio, mas não a mensagem do trabalho histórico.
Ao escrever um texto, ainda que científico e fundamentado em variadas fontes, o historiador leva para a narrativa uma parte de suas impressões pessoais, abrindo margens para que se conclua que a verdade absoluta não existe em textos históricos. Um romance baseado em fatos reais deixa de ter valor científico apenas por se tratar de um gênero literário que pressupõe ficção. Truman Capote ajudou os escritores a buscarem um meio de romancear a vida real, sem que o fato histórico fosse alterado em sua essência. Muitas pessoas que leram “Parabélum” me perguntaram se é verdade que a esposa do matador de Gregório teve um caso extra-conjugal com ele. O livro insinua, mas não afirma um fato anunciado pela tradição oral. Monsenhor Chaves refutaria a informação de quem viveu à época do crime, pois nada há que se comprove. É como a Bíblia, um livro centrado em tradição oral; não há documentos que comprovem as palavras que são atribuídas a Jesus no Novo Testamento, nem evidências foram descobertas para muitos fenômenos narrados no Velho Testamento.
A tarefa do historiador não é simples. Na montagem de um relato, é inevitável que história e ficção se cruzem e se misturem, especialmente em exemplos como o da Batalha de Little Bighorn, que não deixou sobreviventes brancos. A história então terá que engolir a versão indígena, provida de êxitos e bravuras de seus guerreiros, até talvez com uma pitada adicional de sentimentos. Sob qual visão os fatos devem ser narrados?