“Parece um cordão sem ponta / Pelo chão desenrolado / Rasgando tudo que encontra / A terra de lado a lado...”
Essa quadra da música “A Estrada e o Violeiro”, de Sidney Miller, é a descrição de um grande sentimento que alguém pode ter, quando viaja por esses confins sertanejos. Tudo pode acontecer, ou nada. As surpresas que vão na frente guardam o que a vista não alcança, por isso viajar é sempre um prazer a mais para guardar no baú das recordações.
Rodoviária de Oeiras. Destino: Teresina. Foi num desses dias nublados de começo de ano que a simplicidade de um povo hospitaleiro mostrou-se real. Homens conversando, tomando cafezinho, despojados e solícitos informam despretensiosamente que o ônibus só sai às 09h00. Puxando de uma perna, um rapaz mudo aponta os boxes das empresas e gesticula para mostrar o local de embarque. Poucas bagagens são despachadas. Os passageiros aos poucos vão se acomodando, com dificuldades para encontrar os assentos porque a maioria dos sinais indicativos está danificada. Uma senhora gorda acha que a cadeira está muito inclinada, enquanto abre um saco gorduroso com bolos e salgadinhos e começa a comer tirando lascas de dentro do saco.
Um senhor pede para identificar o seu assento: poltrona 19, corredor. Senta-se na janela, como se já soubesse o lugar. A mulher gorda continua a comer. O homem mudo ajuda a embarcar as pessoas, sem lhes pedir dinheiro. Uma garota magra, aparentando 12 anos, mostra-se familiar com o ônibus. Deita e levanta poltronas, abre e fecha janelas, caminha pelo corredor com desenvoltura. Ao fundo, uma criança conversa sem parar. O senhor da poltrona 15 assovia baixinho. Segura um guarda-sol feminino e uma pequena valise. O chapéu, o bigode fino e uma aliança grossa anunciam o tipo nordestino.
O ônibus sai no horário previsto, deixando para trás formas rotineiras que se repetem e se misturam para dar vida à Rodoviária de Oeiras. Uma após outra as paradas vão acontecendo, intermináveis. Dois homens embarcam na estrada. Têm dificuldade para receber o troco: o motorista também é cobrador. Mais da metade dos lugares está vaga. A passageira gorda lamenta a sujeira do banheiro, enquanto fecha o saco de bolos. A moça da frente informa que vai a Teresina fazer uns exames que vão durar dois dias. Uma senhora embarca com três crianças e orienta para se acomodarem em um só assento, porque o preço é caro e ela só comprou uma passagem. Uma voz ao fundo conta que está alugando a casa em que mora porque vai se mudar para Teresina. É o interior rasgando a terra rumo à capital.
Chove lá fora. É o inverno insistente. Sobe no ar um cheiro forte de mato verde. As janelas estão abertas porque o ar condicionado está quebrado. Tempo fechado. As chuvas dos últimos dias interromperam estradas, prejudicaram as linhas telefônicas, inundaram casas e fizeram vítimas. Mas a plantação cresce e promete uma boa safra.
Mais uma parada na estrada. Muita gente para entrar e sacos para colocar no bagageiro. Sobe um rapaz mastigando um pedaço de bolo. Como se produz bolos nessa região...
Rodoviária de Floriano. Produtos importados se espalham pelos boxes na fachada: óculos, aparelhos de som, relógios, bonecas, bolsas, chapéus, cintos... Doces de buriti em embalagens naturais contrastam pela tipicidade, ao lado de alguns sacos de batatas Rufles. Um homem varre insistentemente um chão que não consegue limpar, mas a intenção é boa. O movimento é grande, o banheiro é imundo e as lanchonetes aparentam grande desorganização de produtos amontoados. Duas panelas de mingau de milho em um balcão se destacam das ofertas habituais de salgadinhos, bolos, refrigerantes e refrescos. A garota magra compra petiscos ensacados e refrigerante em lata: a novidade é mais saborosa...
De volta à estrada, um vendedor de milho cozido pede carona. As espigas estão amontoadas em uma bacia dentro de um saco plástico. Comenta que Água Branca está exportando muito milho para Teresina. Boa safra, aquela.
Muitos passageiros ficam pelo caminho. Na chegada a Teresina, ninguém espera pela Rodoviária, e o ônibus chega ao final da viagem um pouco melancólico, quase ninguém para desembarcar cinco horas e meia depois.
Uma placa no interior do ônibus adverte:
“Senhores clientes, informamos que, por medida de segurança, estaremos sendo filmados durante a nossa viagem. Agradecemos a sua colaboração. Obrigado”.
Imagine quantos filmes bons se perdem por esses cordões sem ponta do nosso sertão nordestino...