Eu tinha 18 anos quando minha mãe me mandou votar. Isso mesmo: foi ela quem me fez “exercer a democracia” pela primeira vez. Embora já meio taludo, eu realmente não sabia o que aquilo significava. Lembro que fiquei numa fila enorme, sem entender o quê me esperava; uma fila que não andava e que, segundo comentavam ao meu lado, duraria o dia inteiro. Passava de meio-dia (e veja que cheguei lá bem cedo da manhã) quando meu pai e minha mãe entraram no ambiente de votação com um prato feito. Acreditam? Um prato feito, enrolado num pano de prato. Fiquei morto de vergonha. Era de se esperar, uma atitude daquela para um cara tímido como sempre fui. Antes de sair, minha mãe olhou em minha direção e disparou: “é só marcar os nomes que lhe dei naquele pedaço de papel”.
Meu primeiro voto foi assim: induzido. Eu nunca ouvira falar nos candidatos que tinham seus nomes naquele minúsculo pedaço de papel, escrito com a bonita letra da minha mãe. A fila não andava e eu ali, com um prato na mão e um pedaço de papel no bolso, tentando me manter de pé e esconder a vergonha.
As eleições seguintes foram mais politizadas. Fui morar em Salvador, cursei Economia, fiz parte de movimentos culturais e fui amigo de estudantes de arquitetura – à época, os mais combativos do meio estudantil baiano. Era impossível, por exemplo, ter uma educação política que não tivesse respaldo em jornais como O Pasquim, Opinião, Ex ou Movimento. E ainda a revista Cadernos do Terceiro Mundo, com suas matérias combativas e de fortes denúncias. Pairava no ar a necessidade de uma ideologia. Todos nós defendíamos uma ideologia. Estudávamos o Marxismo, entendíamos a luta de classes, brigávamos por direitos iguais, líamos Sartre, Camus e Brecht, fazíamos um escarcéu para lutar pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade – símbolos franceses. A polícia é que não deixava, perseguindo a influência do macartismo sobre o protesto brasileiro.
Com o tempo, descobri que a ideologia passou a ser uma mercadoria de negociação. Partidos com as mais diversas feições passaram a se unir para ganhar eleições. Eu achava aquilo muito estranho e difícil de entender: como políticos tão divergentes poderiam subir no mesmo palanque e manter coerentes discursos de ideologias antagônicas? Foi quando percebi que o voto era pela cara. Aliás, o Brasil já andava assim: votando pela cara. Ao brasileiro não mais interessava a paixão por uma ideologia, mas o voto de cabresto, aquele amarrado a um favor ou a uma benesse, um emprego, uma conta de luz, um milheiro de telha ou a prestação da geladeira. O dinheiro ficou à frente do voto. Resolvi, então, votar pela cara, por uma avaliação pessoal, por um amigo ou por um cara simpático.
Passei a observar, apenas por diversão, os discursos, os cartazes e os slogans de campanha. Todo mundo sabe a diversão que é, ouvir alguns, se não muitos, candidatos exibindo as suas idéias. Fico imaginando: agora vamos pra frente, com tanto entusiasmo. Entra eleição e sai eleição e não vislumbro mudanças, não vejo discursos justos e coerentes, mas apenas promessas vãs e impossíveis, além de comporem apenas um discurso eleitoreiro, porque a cada eleição que chega as oposições estão sempre a cobrar aquilo que a promessa da eleição anterior foi evidente. No fundo, ninguém cumpre nada com nada, porque quem hoje é oposição, amanhã passa a ser situação, e assim a roda viva nos empurra por esse chão de meu Deus.
Nessas eleições de 2012, existem três candidatos que são meus amigos, com quem já travei alguns bons papos, mesmo antes de chegarem onde hoje estão. Escolhi um deles para dar uma contribuição, não que os outros não merecessem, mas fiz porque quis, assim como quem despretensiosamente estende a mão a um amigo quando o encontra. A princípio, fui bem recebido, sem dúvida. Mas o passo seguinte me levou a um assessor, um coordenador de campanha, que gentilmente me convidou para uma reunião técnica, onde se discutiria partes do plano de governo. Cheguei até a ser convidado a apresentar minhas idéias, mas no momento da reunião não houve espaço para tanto. Fiquei, então, com o documento debaixo do braço, observando mais do que participando. Insatisfeito com essa participação, bem diferente do que eu imaginava, liguei para o assessor e pedi uma reunião com a equipe técnica: eu tinha bons projetos a apresentar, detalhados, descritos, todos prontos para serem avaliados. E vejam que deixei claro, desde o primeiro encontro, que não tenho e nunca tive pretensão a cargos. O nobre assessor se comprometeu a um encontro e nunca mais tive notícias. Aliás, outro dia cruzei com ele, mas parecia que nada havia acontecido. O Plano de Governo saiu e não contemplou uma vírgula do que eu teria sugerido. Chego a pensar numa blindagem, onde os ferreiros são sempre os mesmos...
Depois, vieram as decepções com os governantes, as denúncias, o disse-me-disse, as acusações, o sobe e desce dos conchavos obscuros, a falta de perspectivas que eu não conseguia vislumbrar. Preferi optar pela amizade. Por isso, vou anular meu voto nessas eleições. Há quem diga que farei uma besteira, que os políticos estão pouco se lixando para quem vota nulo, mas a minha consciência estará tranqüila. Se é para votar em um produto, vendido na televisão, no rádio, pessoalmente ou em cima de um palanque, prefiro os que me atraem, os que me deixam sossegado, alheio a esse sistema doente que precisa urgentemente de um tratamento de choque. O que me resta de ideologia, se ainda resta alguma coisa, vou guardar em meu escritório e passar para os livros que escrevo. Pelo menos, hoje não há mais a necessidade de almoçar na fila de votação.