A lembrança mais remota que tenho de uma canção é “Maracangalha”. Em 1956, Com quatro anos, no velho sobrado de minha avó, em Aracati, escutava a voz de Maria, que ajudou mamãe a criar os filhos: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou, / eu vou de chapéu de palha, eu vou”... Em 2003, no Rio, depois de ler “O mar e o tempo”, a biografia de Caymmi escrita pela neta Stella, resolvi: “Vou conhecer Dorival”. Telefonei para o apartamento na Rua Souza Lima, em Copacabana, acertei dia e hora e lá fui, com meu amigo Pedro Augusto, neto de Carlos Drummond de Andrade. O compositor me esperava sentadinho em um sofá, ao lado de Stella Maris, a estrela do mar com quem foi casado por 68 anos. Tive, ali, a certeza de que me encontrava com um artista de gênio, tão importante para a música popular brasileira quanto Noel Rosa e Pixinguinha. Disse-lhe da admiração, do carinho e do respeito que todos lhe tínhamos. E Dorival, singelo e humilde como um santo:
─ Muito obrigado pelas suas palavras, eu fico muito feliz com tanta coisa bonita que você está dizendo...
Alegrou-se ao saber da ascendência ilustre de Pedro:
─ Seu avô era um grande homem. Sempre gostei da poesia dele.
Perguntou-me onde nasci. Ante a resposta de que em Fortaleza, recordou imediatamente:
─ Fui eu quem reinaugurou a Ceará Rádio Clube, do João Dummar, em 1941. Fiquei hospedado em um hotel na esquina da Praça do Ferreira, não lembro o nome agora...
Só faltava dizer “Excelsior”, como se fosse pouco a impressionante memória que conservava aos 89 anos...
E passou a comentar trechos da biografia assinada pela neta. De vez em quando, Dona Stella intervinha:
─ Dorival, ele já sabe disso, está no livro...!
─ Mas eu quero contar essa história!
E rememorou a chegada ao Rio, o sucesso de Carmen Miranda, o roubo do violão autografado por dezenas de músicos, a amizade fraterna com Jorge Amado... Como se tudo isso tivesse ocorrido ontem, e não há décadas...
À saída, ofereceu-me educadamente um CD com vinte gravações originais, do “Samba da minha terra” a “Marina”. E esforçou-se por autografá-lo, embora com um mínimo de visão. A letra quase ilegível, trêmula, só eu consigo ler o que escreveu ali: “Para Edmílson Caminha, com a estima do amigo Dorival. Copacabana, 17.7.03”.
Esse, o artista iluminado que tive o privilégio de conhecer. Ninguém, no Brasil, compôs canções em que letra e música se casam com tanta perfeição que, no dizer de Arnaldo Antunes, nem parecem coisa de gente. Não admira, pois, que Caymmi tenha influenciado todos − rigorosamente todos − os que depois dele vieram, de Caetano a Gil, de Tom a Chico. Foram mais ou menos cem canções compostas, concebidas, decantadas, lapidadas no lento decorrer de sessenta anos − o que dá menos de duas por ano. Porque Dorival não tinha pressa: nem de viver, nem de compor, nem de amar. Serenamente, assistia ao espetáculo dos homens e do mundo, com a sábia discrição dos espíritos verdadeiramente grandes.
Raras pessoas fazem jus ao que dele disseram amigos e companheiros: “Caymmi é a maior inspiração da música brasileira” (Carlos Lyra); “A morte dele é perder o maior professor das nossas vidas”(Tom Zé); “Sua perda equivale à derrubada de um baobá na floresta amazônica” (Hermínio Bello de Carvalho); “Ele encarnou como quase ninguém o mito brasileiro” (Francisco Bosco); “Eu comparo a perda dele a uma catástrofe ecológica. Ficamos num deserto” (Aldir Blanc).
Esse, o Dorival Caymmi que, pela generosidade humana e pela grandeza do talento, fez o mundo melhor e a vida mais bela. A ele, só podemos dizer: OBRIGADO!, essa “palavra-tudo”, como escreveu Drummond.