“Mais uma das tais estórias que se danam a correr de boca em boca do povo e viram folclore em seu anonimato. Diz que certa vez, e isto já vai para carradas de anos, lá no município de Remanso, extremos da Bahia com o Piauí, estava um garoto numa roça. Nu da cintura pra cima, pés descalços, com uma baladeira e uma capanga a tiracolo. Também com uma bandeja de café e cuscuz que levava para os trabalhadores no eito. Assim ao lado, um engenho-de-madeira e, mais adiante, uma bonita vaca. Chega um cidadão, a cavalo, na porteira e inicia um diálogo com o garoto:
Doutor - Menino, abre aqui esta porteira, para eu passar!
Menino - Quem é o senhor?
Doutor - Sou um bacharel.
Menino - Que diacho é um bacharel?
Doutor - Bacharel é um homem sabido, estudado. Um homem que sabe de tudo.
Menino - Ah!... então o senhor, que sabe de tudo, deve saber abrir uma porteira.
O doutor desceu do animal, abriu a porteira e continuou a conversa:
Doutor - Meu santo, para onde vai este caminho?
Menino - Este caminho não vai pra lugar nenhum. A gente é que vai por ele até o Papagaio.
Doutor - O que é isto? É onça?
Menino - Não senhor. É um couro.
Doutor - É seu?
Menino - Não, senhor. É de onça.
Doutor - Vai vendê-lo?
Menino - Vou, sim senhor.
Doutor - Por quanto?
Menino - Por cem mil réis.
Doutor - Vende não. Está caro.
Menino - Vendo!
Doutor - Só se Deus quiser.
Menino - Se ele não quiser, eu vendo a outro.
Doutor - Meu santo, quantos braços tem São Francisco?
Menino - Depende.
Doutor - Depende de quê?
Menino - Se for São Francisco Santo, só tem dois. Se for o São Francisco rio, tem braço que ninguém conta.
Doutor - E este engenho é todo tempo assim no sol?
Menino - É não, senhor.. Só de dia. De noite é na sombra.
Doutor - Como você se chama?
Menino - Eu mesmo não me chamo de jeito nenhum. Os outros é que me chamam de João.
Doutor - Quantos anos você tem?
Menino - Depende.
Doutor - Depende de quê?
Menino - Se for o tempo do dia que eu nasci pra cá, tenho doze anos. Se for aquela parte do corpo, só tenho um.
Doutor - Por aqui tem muitos meninos compenetrados e bestas como você?
Menino - Até que tinha. Mas se deu que passou por aqui um homem rico e levou quase tudo pra cidade, diz que pra estudos de bacharel.
Doutor - Meu filho, quem é seu pai, que não lhe deu educação?
Menino - O senhor me chama de meu filho e ainda pergunta quem é meu pai?”