Nidalvo Quinto dos Santos é um daqueles baianos que faz jus à naturalidade: gosta da boa vida e não arreda de uma boa mesa de bar. É entre um chopp e outro que ouve histórias e relembra casos de sua infância, trazendo para as telas de um computador crônicas da vida cotidiana.
Entusiasmado com o livre trânsito literário, que favorece os que têm facilidades de se expressar com maestria, o baiano resolveu contar histórias e tirá-las da gaveta. São "causos" curtos, rápidos e objetivos, mergulhando em poucas linhas no mundo alegre da memória. Como articulador de boas amizades, Nidalvo é o representante oficial da baianidade, comunicativo, espirituoso, sensível e de boas relações, esbanjando disposição para garantir um slogan que por anos acompanhou a propaganda oficial da Bahia: “Terra da Felicidade”.
Tempo é o que não falta ao baiano, não que ele seja protótipo do malandro, mas pela aposentadoria que abriu mais oportunidades de fazer o que bem entende. E, diga-se de passagem, o sonho de muita gente: sombra e água fresca. Aliás, o baiano já vem até mudando o dito popular, saindo da sombra para o sol e trocando a água fresca por cerveja.
Para se ter uma idéia dessa baianidade, seguem duas crônicas de Nidalvo Quinto, para mostrar o que é que o baiano tem.
Enganava, beijava na boca e ainda chamava de meu amor
Nidalvo Quinto
Dedicado professor de português e história na sua escolinha particular, Anésio Leão, já com 65 anos na época, era considerado um galanteador. Dona Anita, sua esposa, apelidada de “zero vírgula cinco” em razão da baixa estatura, há muito tempo desconfiava de uma paixão recôndita que ele nutria por Iasmin, uma ex aluna desde sua chegada a Coaraci. Certo dia, Dona Anita resolveu tirar a limpo o boato, e arriscou: Anésio, você gosta mesmo de Iasmin? Ato contínuo, ele respondeu: Verdade, Anita, desde priscas eras.
Magoada com a indesejada perfídia, Dona Anita pegou um guarda chuva pra surrá-lo. Ele saiu correndo e só na frente da Prefeitura os fatos foram esclarecidos. O professor, querendo entender que a pergunta da esposa se referiu ao jasmim, planta da família das oleáceas, cuja cor vermelha era sua preferida, contra-atacou. “Anita, meu amor, o jasmim, segundo dizem, evita briga de casais e purifica ambientes onde há discórdia”.
Depois desse irresistível argumento, Dona Anita se entregou a um longo beijo do maridão e saíram caminhando em direção ao doce lar. Os curiosos, e sempre há muitos curiosos nessas horas, aplaudiram o hábil professor na arte da enganação. Cheia de amor pra dar e arrependida por ter dado ouvidos à boataria, Dona Anita confessou: “o seu amor por mim é uma centelha perto do que sinto por você, Anésio”.
Dona Anita e Anésio Leão ainda viveram juntos por muito tempo. Ele morreu em 1957, vítima de enfarto. Certamente, amando Iasmin.
O implacável velocímetro do tempo
Nidalvo Quinto
Conversa vai, conversa vem, na mesa do bar sempre surge aquele papo sobre a vida e as mazelas que têm parentesco com o velocímetro do tempo. Uns acham que a vida é como uma lenda: não importa que seja longa, mas que seja bem narrada. Outros, a depender do grau de embriaguez, recorrem a Aristóteles, dizendo que melhor é sair da vida como de uma festa, nem sedento nem bêbado. Parabenizo quem alcançou o nirvana a ponto de tirar de letra este assunto que, só de pensar, me atormenta, a senilidade.
O exemplo mais presente na minha memória é o da vovó Joana. Vez por outra, eu e Novenal, meu irmão mais velho, sob pressão da nossa mãe íamos visitá-la. Já se sabia que vovó acordava muito cedo e cultivava o péssimo hábito de preparar o café da manhã vestida no robe que usara durante a noite. De tão folgado, as laterais deixavam expostos seus peitos que mais pareciam dois ovos estrelados. Esquecia de escovar os dentes e os cabelos estavam sempre espandongados. A impressão era de que estávamos, frente a frente, com um mico leão.
No café, éramos submetidos ao surrealismo de ouvir vovó Joana balbuciar sua música preferida das Frenéticas:
Eu sei que eu sou
Bonita e gostosa.
E sei que você
Me ama e me quer.
Eu sou uma fera
De pele macia.
Cuidado, garoto!
Eu sou perigosa.
E o pior sempre acontecia. Decepcionada com a pouca ou quase nenhuma emoção esboçada pela platéia que ria discretamente, eu e Novenal tínhamos que nos submeter às ameaças sutis da nossa Edith Piaf: A ingratidão tira a feição, meus fio!
Vou levar para o túmulo a certeza de que vovó sonhava com o show business.