Seis horas da tarde. O expediente está chegando ao fim. O operário olha o relógio e dirige-se ao cartão de ponto. Enfim, mais um dia de trabalho se foi. É sexta-feira, noite ideal para um papo com os amigos, umas biritas, um tira-gosto maneiro, a promessa de bons momentos. A mulher... Bem, a mulher não vai se importar com um pequeno atraso. Afinal de contas, todas as sextas ela vai visitar a mãe ou a sogra ou uma amiga, nada que demore tanto, pois o marido deve estar chegando.
Quando ele vai ao bar, mete a mão no bolso e retira um umbu, ainda de vez, fruta cítrica e deliciosa de que os quintais do Piauí são fartos. Aquela frutinha deverá fazer jus a umas 3 quem sabe 4 doses, boas doses. Talvez mais. Uma talagada, uma mordidinha; uma talagada, uma mordidinha. E assim vai o papo se arrastando. O operário não vê a hora passar, mas presta bem atenção em uma das mais fascinantes produções piauienses: a cachaça.
É na mesa de bar que a cachaça melhor se manifesta, criando uma rotina na vida de muitos brasileiros. Há preferência para todos; há sabores para os exigentes; há caretas para os gulosos; há cores para os atentos; há o brilho nos olhos dos que se excedem; há momentos alegres; há situações embaraçosas; há descontrações pela fala; há discursos inflamados; há piadas divertidas; há elogios à mulher brasileira; há um brinde ao time preferido; há (infelizmente) algumas brigas graves. O que há em torno da cachaça é um mundo desconhecido, às vezes previsível, algumas horas desconcertante. Beber também exige controle de cada um, e os que o perdem volta e meia metem-se onde não deviam, encerram a noite de forma nostálgica e amanhecem o dia com a famosa ressaca moral. Mas não são desses que pretendemos falar, porque beber é também uma arte onde só o bom senso pode prevalecer. E ter bom senso é saber beber.
Cachaça no Piauí é um assunto dominante. Por todo canto existem os que a apreciam, os que a colecionam, os que a degustam como se obedecessem a um ritual só visto entre os enólogos. Alguns a preferem gelada; outros ao natural; e outros servida em coquinhos, que a acrescentam um sabor especial, ou ainda misturada com sumo de limão e açúcar. Olham-na contra a luz, apreciam a textura e a transparência, ou veem-na encorpada, amarelada, às vezes azulada. Essas formas especiais servem para estabelecer um respeito mútuo entre o degustador e esse líquido precioso. É como se existisse uma cumplicidade do fundo da alma, um agradecimento em forma de hino de amor, acalmando os nervos, o estresse do dia-a-dia, as irritações urbanas que os acometem diariamente. Brindar é sempre agradável, e os melhores brindes são feitos em mesas de bar, depois do expediente, antes do jantar, até que o operário seja conduzido aos braços de quem o aguarda.
Com açúcar, com afeto
“Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa, qual o quê!
Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário, sai em busca do salário
Pra poder me sustentar, qual o quê!
No caminho da oficina, há um bar em cada esquina
Pra você comemorar, sei lá o quê!
Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo, sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão, qual o quê!
Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer? Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você”.
Essa música de Chico Buarque traz uma das letras mais representativas do dia-a-dia do operário brasileiro. Gira, é claro, em torno da cachaça, da mesa de bar, do encontro com os amigos, dos elogios à mulher, do futebol. Assuntos, diga-se de passagem, que todo brasileiro domina. É um fascínio que exerce sobre os homens a cachaça brasileira. No Piauí, não poderia ser diferente. Somos possuidores de uma excelente produção de cachaça, refinadas, artesanais, industrializadas. A verdadeira cachaça hoje repousa nos tonéis espalhados por todo o Estado. Têm-se sobressaído nomes como Jitirana, Castelense, Siri, Mangueira, Lira ou Sertãozinho. Mais recentemente, o Piauí assistiu ao lançamento da cachaça Lira, de longa linhagem tradicional que vem do final do século XIX, em Amarante. Seu José Lira, o proprietário, que a fabrica no sítio Floresta, do alto de seus mais de 90 anos ainda hoje saboreia a cachaça servida em um coquinho em que faz questão de servir os visitantes. Dizem as boas línguas que seu José Lira ainda tem muitos anos pela frente, sempre curtidos na cachaça.
A produção piauiense é tamanha que foi criada a Associação dos Produtores de Cachaça do Estado do Piauí (APCP), com 260 alambiques que produzem cerca de 3,5 milhões de litros de cachaça ao ano. No mercado de exportação, o próprio Nordeste é a região brasileira que mais consome a cachaça piauiense, além de mercados garantidos na Europa e Estados Unidos e, potencialmente, a cidade de Brasília como forte consumidora do produto.
O município de Castelo do Piauí é o maior produtor de cachaça do Estado, destacando-se ainda Palmeira do Piauí, Santa Luz, Colônia do Gurguéia, Bom Jesus, Amarante, Barro Duro, Inhuma, Pedro II, São João da Serra, São Miguel do Tapuio, José de Freitas e Teresina. A cachaça piauiense está em expansão, especialmente para o mercado internacional. É um setor da economia que vem apresentando excelente desempenho, especialmente pela geração de emprego e renda, associados a outras atividades como a produção de rapadura, açúcar mascavo e o aproveitamento de resíduos de produção como adubo e ração para animais.
Com açúcar e com afeto, o operário brasileiro é evidentemente o que melhor tira proveito da cachaça. É com ela que ele se diverte, que cria coragem para a paquera, que ri, que perde a inibição, que descontrai, que faz amigos e que chora quando convém. A todos eles, uma talagada. E um umbuzinho, para rebater.