Paz e amor!
Muitos haverão de lembrar essa frase, que nasceu na década de 60 oriunda do movimento hippie americano. Grupos de universitários – vamos repetir: universitários! – resolveu fazer um protesto contra as guerras e a sociedade de consumo, adotando uma postura que enaltecia a paz, a liberdade de expressão e a defesa do amor livre: “make love, not war”. Saíram das faculdades e ganharam as ruas. Deixaram crescer os cabelos e as barbas e usavam o mínimo de luxo possível, com camisetas e calças velhas e desbotadas como marca do movimento de contestação, além de um bem bolado símbolo trilinear inserido em um círculo que ganhou o mundo e se notabilizou respeitosamente na mídia e nos lares. O movimento, infelizmente, foi mal interpretado por muitos e acabou gerando em cadeia uma leva de desocupados que se intitulavam “hippies”, descaracterizando completamente a ideia primeira da luta pela paz e pelo amor. Esses pseudo-hippies, notabilizados pela imundice pessoal que se confundia com o despojamento do movimento, começaram a sobreviver às custas da bondade alheia, transformando-se em pedintes e drogados, sem a mínima objetividade em suas ações.
Mas, afinal de contas, o que o movimento hippie tem a ver com esse texto? A praia da Barra Grande, desconsiderando toda a evolução urbana que a tem engolido nos últimos anos, é um dos locais mais aprazíveis do estado do Piauí, não apenas pelas suas belezas naturais, circundadas por coqueirais e um berçário marinho, mas também pelo olhar atento de uma comunidade que ano a ano vem lutando para evitar a degradação e a desorganização que geralmente acompanha a evolução da atividade turística. Aqui você encontra paz e amor, literalmente!
Há alguns anos, vir à Barra Grande era um sacrifício. A estrada não oferecia o menor estímulo; ninguém se arriscava a colocar os seus carros na buraqueira que a ligava à civilização. O litoral do Piauí contentava-se com dois municípios, distribuídos em seus 66 km de extensão: Parnaíba, com 24km de costa, e Luís Correia, com 42km. Até que resolveram emancipar os dois principais povoados: Cajueiro da Praia, a quem Barra Grande é subordinada juridicamente, e Ilha Grande de Santa Isabel, com sede nos Morros da Mariana.
Mas esses detalhes de interesse mais político do que ambiental não foram suficientes para afetar a tranqüilidade da praia. Havia – e sempre houve – um diferencial enorme em relação aos problemas estruturais de outras regiões litorâneas, que a Barra Grande vem administrando com sabedoria: a coerente vigilância de sua comunidade.
Há pelo menos trinta anos, os moradores da Barra Grande vêm se conscientizando da importância de preservar as suas características simples de bem conviver com a natureza. Se você tivesse tido a oportunidade de passar por esta região na década de 80, iria perceber o quanto as famílias, dentro de suas limitações de contato com os grandes centros ou de conscientização ambiental, valorizavam os pequenos detalhes que enalteciam a preservação sem sequer terem noção do que isso significava. As ruas eram limpas, ainda que traçadas na areia de praia; as fachadas das casas traziam flores nas janelas; os jardins eram bem cuidados; os quintais varridos; as plantas ornamentais sobressaíam-se magníficas; as casas mantinham-se bem aparentadas, pintadas com cores vivas e mantidas limpas. Na praça principal da cidade, onde se instalou uma igreja cujas recentes obras de ampliação foram embargadas, os moradores costumavam se encontrar nos finais de tarde. Como não havia bancos para sentar, as pessoas sentavam-se no chão de areia grossa e depois sacudiam as saias e batiam os shorts ou bermudas, sem haver preocupação com sujeira: a areia da praia não altera a forma e não suja. Naquela época de tranquilidade, as famílias tinham por hábito esperar os barcos chegarem do alto, para receber os seus entes pescadores que voltavam repletos de boa colheita. No bar que os acolhia, bebericagens eram sempre acompanhadas por boas histórias e os melhores peixes eram servidos com farinha d’água a quem estivesse por perto, para experimentarem da solidariedade do mar. A vida era bem mais simples do que imaginamos, ao observarmos essa mesma região nos dias de hoje. Não havia a forte especulação sobre a produção do dia, a ganância dos atravessadores ou a pesca industrial, que enterrou de vez a arte de enfrentar no braço a solidão mar adentro. Mas – pasmem! – os moradores continuam a bem cuidar dos seus quintais.
Deixando de lado esses problemas do mundo real da Barra Grande, pelo menos um aspecto a região conseguiu manter intacto em todos esses anos de pressão sobre o seu crescimento urbano: a coerência sobre a ocupação e uso do solo. Ninguém é contra – e jamais será – o desenvolvimento inevitável que com certeza continuará tomando posse do lugar. Mas há, porém, alguns aspectos que precisam ser levantados, quando lançamos um olhar um pouco mais crítico. Antes, vale a pena lembrar que a arquitetura predial da Barra Grande é algo simplesmente fantástico, especialmente restaurantes e pousadas, cujo bom gosto de seus proprietários não deixa nada a desejar a grandes destinos turísticos. Some-se a isso a tipicidade das casas residenciais, onde os moradores têm por hábito pintar as suas fachadas com cores vivas e contrastantes, gerando um cenário receptivo e extremamente agradável, o que empresta ao lugar uma atmosfera de completa harmonia e saudável convivência, além da harmonia de suas ruas naturais, com iluminação discreta e instalada em postes de madeira rústica e luminárias artesanais.
Qualquer estudioso da atividade turística sabe que o Turismo é predador, quando não acompanhado de um planejamento adequado. São inúmeros os casos de regiões que fracassaram porque não apresentaram a mínima preocupação com as suas áreas visadas por fluxos de pessoas ávidas por novas aventuras. O exemplo mais próximo é a praia de Atalaia, no litoral do Piauí, cuja desestrutura turística deixou-a entregue a um turismo predador, sem planejamento, movido ao bel prazer de interesses políticos e de projetos que nunca foram discutidos com a comunidade local e ainda hoje têm dificuldade de se firmar. Ali já foi feito tudo para dar certo, mas qualquer iniciativa esbarra na falta de conscientização e ousadia empresarial e em projetos inadequados. A grande maioria das ingerências públicas afeta diretamente a estrutura de atendimento. Diferentemente do que ocorre na Barra Grande, a população de Luís Correia jamais ousou abrir oportunidades para discutir os projetos que vêm alterando as suas formas de relações comerciais e de sobrevivência.
Quando voltamos os olhos para as zonas residenciais, os problemas são bem mais graves. Qualquer desavisado pode notar que Luís Correia é uma cidade sem planejamento. Por longos anos, as suas residências próximas à faixa de mar foram engolidas pela areia, porque um plano de contenção de dunas demorou a chegar. Os moradores não exerciam pressão. A exemplo de outras regiões, como a praia da Pedra do Sal, os visitantes notadamente teresinenses compravam as casas dos pescadores e ali implantavam suas casas de veraneio, descaracterizando a vila que sempre fora sustentada do que o mar oferecia. Hoje, se ganha mais dinheiro atendendo ao turista do que sobrevivendo de costumes antigos. Um aspecto, no entanto, não acompanhou essa mudança radical: a discussão da comunidade sobre a nova realidade que se avizinhava e que chegou para alterar sobremaneira a forma como a população se relacionava com o visitante e com os seus próprios hábitos diários. Por outro lado, a Barra Grande está constantemente recebendo turistas estrangeiros, especialmente europeus, que levam aos seus países a imagem de um local maravilhoso, encantador e, sobretudo, hospitaleiro.
No povoado da Barra Grande, a população sempre esteve atenta a essas interferências externas. Representantes locais de sua comunidade querem saber como a atividade turística pode interferir no seu dia-a-dia. Afinal de contas, são eles que estão labutando o ano inteiro para sobreviver. Associada a esse aspecto da sobrevivência existe a preocupação com o meio ambiente, com a preservação de um ecossistema ameaçado pela invasão da modernidade. Os moradores exigem coerência não apenas de seus irmãos que investem em novas formas de serviços, como pousadas, restaurantes, bares, lojas de souvenirs etc., mas também dos projetos governamentais que estão constantemente a bater na porta de uma região promissora, especialmente depois que o asfalto diminuiu o tempo de percurso. Um exemplo claro está na recente discussão sobre a implantação de uma praça, trazida do gabinete da Secretaria de Turismo, através de projeto do arquiteto Júlio Medeiros, para desembocar em uma área que ninguém aceitou como propícia. Quando a comunidade soube da existência do projeto, muitas etapas já haviam sido cumpridas. Uma ação rápida levou a um posicionamento do Ministério Público, que convocou uma audiência pública para discutir o assunto.
As manifestações contrárias de moradores e de representantes da comunidade da Barra Grande foram muitas durante a audiência, que ocorreu em meados de julho. A professora Claudete Dias, doutora em História e habitante da Barra Grande há pelo menos 25 anos, foi uma das que se manifestou contra a ação da Secretaria de Turismo, cujo projeto polêmico recebeu verbas do Ministério do Turismo. Doutora Claudete chamou a atenção para os efeitos maléficos que a praça trará à região, lembrando que a sua localização é inadequada e que a proposta – que envolve palco para apresentações musicais e shows – fere a tranqüilidade de um povoado que sempre primou exatamente pelo sossego. “Não estamos gratuitamente contra a praça, que pode até ser necessária em futuro – comentou doutora Claudete – mas é preciso lembrar que a Barra Grande carece de outros serviços mais urgentes e imprescindíveis e que deveriam ser prioridade”. A professora foi pioneira na implantação de projetos de preservação ambiental na região da Barra Grande e uma das primeiras vozes a se manifestar pela defesa de suas originalidades, através do projeto “Ambiente-se”.
Além desses aspectos, a localização da praça, denominada “Praça do Pescador”, fica afastada do centro urbano e recebe rajadas de vento que levarão ao restante do povoado toda a sonoridade das futuras programações musicais. Vale lembrar que os poucos grandes eventos que aconteceram na Barra Grande em nada melhoraram a região, tendo sido produzidos por pessoas de fora e freqüentado também por pessoas que vieram à praia atraídas exclusivamente pelo evento. Não houve ingerência da população local, que se viu distante de festividades que só deixaram o incômodo de seus decibeis.
“Barra Grande é, na verdade, uma concha acústica; qualquer som em qualquer lugar é ouvido em todos os cantos, por isso lutamos diariamente para que os visitantes tenham bom senso e evitem sons agressivos ao sossego do lugar”, ressaltou doutora Claudete.
Essa insistência, que para muitos parece antipática e desnecessária, foi responsável por estabelecer na Barra Grande uma calma pouco encontrada em outras praias. Todos haveremos de concordar que vivemos uma ditadura da musicalidade, pois por onde andamos não há como livrarmo-nos da predominância dos bate-estacas. Hoje, o visitante chega à Barra Grande e percebe um local tranqüilo, sem a barulheira infernal que vem agitando e invadindo as praias, como a gerada por carros de sons que mais parecem boates ambulantes. Além disso, os moradores continuam preservando as suas fachadas, os seus quintais, os seus jardins, a tranquilidade de suas ruas, o bom gosto de seus negócios. Esse é um exemplo do qual os visitantes precisam tirar proveito e perceber que, em uma relação de troca, prevalece o costume local: paz e amor como uma saudação ao outrora valoroso movimento hippie.