Sertanejo simples, só não abro mão de um pequeno luxo: morar numa casa com quintal. Quando mandei assentar o primeiro tijolo da velha casa onde moro, comecei a plantar as primeiras árvores: Jambo, ipê, jatobá, acácia, azeitona-da-terra, macaúba, mamorana, seriguela, manga, limão, carambola, pitanga e uma batelada de plantas floríferas. Resultado: divido o espaço com rolinhas, bem-te-vis, anuns, cambaxirras, sabiás, curicas, cambacicas, pardais e quem mais chegar. E como chegam! Há poucos dias chegaram um camaleão discreto (não suporta ser fotografado) e um gavião mal intencionado. De todos os posseiros que se adonaram do meu quintal, o mais intrigante é o Baryshnikov( o nome é uma contribuição de dona Áurea), um beija-flor solitário, agressivo arisco e belo como um pingo de luz. Minha relação com o Barys sempre foi pautada pelo respeito e por um certo distanciamento...
Há pouco tempo, por razões que ignoro, o beija-flor resolveu aproximar-se de mim. Ultimamente, mal começo a aguar o espaço do qual se apropriou, ele aparece. Faz alguns volteios e, para minha surpresa, pousa numa corda estendida entre duas árvores. Na semanada passada, pousou tão perto de mim que eu poderia alcançá-lo com a mão se assim o desejasse. Ficamos ali, olhos nos olhos, como na velha canção do Chico, mudos de encantamento. Foi aí que me ocorreu a lembrança de um dos momentos mais bonitos do livro Memórias póstumas de Brás Cubas: “A borboleta preta”. Depois de matar a borboleta com uma toalha de linho, Brás Cubas, dado a filosofices, pondera: “Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: ‘Este é provavelmente o inventor das borboletas’. A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa”.
A lembrança do episódio levou-me à seguinte reflexão: Barys já deve ter percebido que a minha função no quintal é fazer chover em sua horta, onde vicejam os “camarões” que ele tanto aprecia. Por esperteza ou reverência, decidiu buscar uma aproximação comigo, o senhor das chuvas. Sábia medida: por ter escolhido mal a divindade a reverenciar, a borboleta preta, de Machado de Assis, acabou se transformando em repasto de formigas. Generoso, vou continuar fazendo chover no quintal do Barys. É divertido brincar de ser Deus, mesmo que seja o pequeno deus de um minúsculo beija-flor.