Millôr, sempre certeiro, recomendava: passe os primeiros cem anos de vida juntando quinquilharias e depois abra um antiquário. Não tenho paciência para tanto. Passei apenas 50 anos juntando papéis que, por muito pouco, não me soterraram em minha própria casa. Gastei duas semanas para desvencilhar-me de uma batelada de revistas e jornais velhos, repasto de ácaros, traças e cupins. O diabo é que tudo aquilo estava profundamente ligado à minha errática trajetória. Além disso, desfazer-se de papéis e amores é sempre correr o risco de jogar fora o essencial e preservar o perfunctório...
Meu filho, simples como um blues, ao ver aquela montanha de papel velho, não se conteve: “Tivesse depositado na poupança o dinheiro aplicada nessa papelada, estaria rico”. Fiz cara de bravo e retruquei: Não, filho, teria apenas alguns caraminguás a mais; seguramente,estaria mais pobre. Não comprei isso para enfeite. Não é força de expressão: somos o que lemos. Além dos textos dos outros, encontrei coisas que escrevi há quase cinquenta anos. Encontrei, por exemplo, alguns exemplares do jornalzinho O Cartucho, editado por mim e por um punhado de colegas na antiga Faculdade de Direito do Piauí, em 1970. No jornal, um texto - De como evitar o verbo assistir na universidade - que quase me rendeu a expulsão da velha FADI. Tive a petulância de criticar as aulas do diretor da instituição, Des. Robert Wall de Carvalho. Peguei uma descompostura em regra.
Numa pasta amarelecida, descobri um punhado de crônicas publicadas no Jornal O Estado, em meados da década de 1970. O nome da coluna: Feijão com Arroz. Minha surpresa foi constatar que temas como cultura, educação, preservação ambiental, trânsito e violência já faziam parte das minhas preocupações. Decididamente, nunca estive na moda. Numa das crônicas, ao falar da péssima coleta do lixo na cidade, escrevi, com tosca ironia: há lixo espalhado por toda parte, o que, se por um lado é ruim, por outro, é muito bom: atesta que estamos consumindo e que nos sobra alguma coisa para jogar fora. O lixo é o luxo da civilização. À época, já me preocupava com o tratamento que dispensávamos aos rios que banham a cidade.
Entre os periódicos guardados, figurava uma batelada de exemplares de o Pasquim, um jornal que,com humor ferino, cutucava o diabo com vara curta. Encontrei também alguns exemplares de Bundas, a revista do Ziraldo, cujo slogan era: “Quem mostra a bunda na Caras não mostra a cara na Bundas”. Consegui salvar umas duas coleções do jornal Chapada do Corisco, que eu e um punhado de companheiros editávamos, em Teresina, na década de 70.
Quando o caminhão dos Trapeiros de Emaús partiu com minha preciosa carga de inutilidades, experimentei uma sensação estranha, misto de alívio e pesar. Mais que papéis velhos, os trapeiros levaram também fiapos de esperança e cacos de sonhos que se perderam nos desvãos da vida...