Por pouco mais de um ano, trabalhei como aprendiz de camelô nas feiras de São Raimundo Nonato. Aos sábados, muito cedo, lá estávamos eu e o Paredão montando a nossa barraca na “Rodinha do Bitoso”, centro da cidade. O lucro era incerto, mas a diversão, garantida. A fauna não poderia ser mais variada: camponeses, camelôs, cantadores, pedintes e marreteiros de todas as versidades. De tão populares, alguns personagens pareciam fazer parte da paisagem. Sem o Melado, o Zé Pança, o Paizinho, a Santa Preta, o “Bode”, a feira não vingava. Cheiros, cores, sabores: um mundo em ebulição.
A feira era um misto de comércio, circo e escola, pelo menos para mim. Nunca me esqueci de uma transação que presenciei ao lado da minha barraca. Um jovem catingueiro chegou, olhou tudo e se engraçou de uns óculos escuros, óculos à Waldick Soriano. Experimentou, conferiu o resultado num espelhinho de bolso e perguntou o preço. “Cinco e noventa, freguês”. Conferiu os caraminguás e decidiu: “Vou levar”. O camelô, sem levantar a voz, declarou: “Cinco e noventa é só a armação, freguês”. O moço refluiu. Pensou um pouco, pôs os óculos sobre a banca, recontou o dinheirinho e perguntou: “E com as lentes? “. “Sete e noventa e cinco”, retrucou o vendedor. Nova investida, novo recuo: “Tá meio salgado, mas vou levar”. Mais uma estocada: “Por esse valor, o freguês leva a armação e uma lente...” Depois de muito chove não molha, o rapaz acabou pagando os dez cruzeiros, que era o preço do produto.
Neófito, não me contive: Por que você não cobrou logo os dez cruzeiros? Com ar professoral, o velho camelô foi incisivo: “Tá maluco, rapaz? Cifras redondas assustam”. E mais não disse. Muito tempo depois, me dei conta de que aquele cidadão era um gênio: semianalfabeto, perdido nos cafundós do sertão, sacou o que os capitalistas só descobririam muito mais tarde. Números inteiros assustam; fracionários confundem. Hoje, de automóvel a sabão em pó, tudo tem um nove no final. Uma coisa é pagar dez reais por um produto; outra bem diferente é comprá-lo por apenas nove e noventa e nove...
Por que me lembrei disso agora? Bem, na semana passada, resolvi comprar uma cafeteira naquele supermercado cuja construção engoliu um bosque inteiro na zona leste da cidade. Nunca disfarcei minha antipatia pelo empreendimento, mas a tal cafeteira estava “em promoção”: R$69,00. Olha o nove aí! Mesmo comprando à vista, pediram-me identidade, CPF, endereço, etc. Até aí, nada de extraordinário: “é tudo para maior segurança do cliente”. Na hora do pagamento, o caixa me estendeu um papel que julguei ser uma cópia da nota fiscal. Assinei sem olhar. A surpresa veio ao conferir o troco: em vez de R$69,00, paguei R$87,68. Resolvi pedir explicação. Candidamente, o moço do caixa me explicou: “A diferença se deve à Garantia Estendida Diferenciada, no valor de R$13,68”. Só então me dei conta de que assinara um daqueles famosos contratos de adesão com 1600 cláusulas. Eu poderia ter estrilado, armado o maior barraco e desfeito a compra, mas aí meus três leitores não teriam este arremedo de crônica. Como vocês podem ver, não passo de um aprendiz de camelô. Nada além.