A imprensa brasileira, notadamente a televisiva, destinou espaço generoso à pequena (para os padrões americanos) tragédia que ocorreu no condado de Cumberland, estado de Kentucky, nos Estados Unidos.Aos fatos: um garoto de cinco anos de idade matou a irmãzinha de dois com um tiro de rifle. Até aí, nenhuma novidade: meninos americanos matam e se matam com incômoda frequência. O insólito, pelo menos para nós, é o fato de o rifle ter sido dado de presente ao garoto na sua festa de aniversário de quatro anos. O rifle, um Crickett,calibre 22, fabricado pela Kuystone Sporting Arms, destina-se justamente ao público infantil e pode ser comprado pela internet sem maiores dificuldades. Para incrementar as vendas, a empresa lançou o produto em várias cores – para as meninas, pink – com o slogan: “O meu primeiro rifle’. Ao comentar o acidente, o juiz do condado, Joe Phelps, afirmou:“Crianças portarem armas aqui é muito normal: cedo, elas aprendem a usar e a respeitar as armas”. Mais didático,impossível.
Não faz muito tempo, escrevi um arremedo de crônica sobre o mesmo tema. Fiquei, literalmente, estarrecido ao ver, na televisão, um pai orgulhoso ao mostrar o primeiro presente que o filho ganhara do avô, uma espingarda Beretta, cano duplo, capaz de matar um elefante. Foi com um “brinquedo” desses que o escritor Hemingway estourou os miolos em 1961. Na crônica afirmei: um dia, ao receber o fora da namoradinha ou uns cascudos do colega fortão, o moleque chegará à escola com seu brinquedo mortífero, matará 18 coleguinhas, 6 professores,dois bedéis e, em seguida, cometerá suicídio. O mundo ocidental ficará comovido com a tragédia, a imprensa fará o carnaval de sempre e tudo “continuará como dantes no quartel d’Abrantes”. No documentário “Tiros em Columbine”(2002), o diretor Michael Moore faz uma série de perguntas sobre o apego exagerado dos americanos às armas pessoais. Sua conclusão é pouco lisonjeira: “Os americanos são muito medrosos, por isso atacam antes de serem atacados”. Falta-me autoridade para negar ou confirmar.
O certo é que, tragédia após tragédia, os norte-americanos aceitam discutir tudo, até a mudança do nome do país, mas que ninguém ouse pelo menos aventar a possibilidade de estabelecer algum tipo de controle sobre a venda de armas de uso pessoal. É cláusula pétrea na Constituição dos EUA. O presidente Obama vem tentando e, sistematicamente, tem sido derrotado no Congresso Nacional. Deixo aqui uma sugestão de legenda para ser acrescida à bandeira americana: Deus salve nossas armas.
Voltando ao “acidente” que deu origem a esta arenga, basta lembrar o comentário da avó da pequena Caroline, morta pelo irmão: “Foi só um acidente. Era a vontade de Deus. Era hora da Caroline partir”. Nada além. Por esta e outras, mantenho prudente distância dos “irmãos do norte”. Não é possível confiar num povo que, numa das mãos, conduz uma Bíblia; na outra, um Colt.