Certa feita, num jornalzinho alternativo, entrevistei um cidadão negro. Eu disse negro e não afro-descendente: o moço nasceu na África e viveu por lá até mudar-se para Londres onde se fez doutor. Quando lhe perguntei se alguma vez já fora discriminado por causa da cor, esboçou um leve sorriso e afirmou: “Muitas vezes,mas a pior das discriminações é a invisibilidade”.Diante do meu espanto, explicou: “Às vezes, fico sentado na sala dos professores lendo ou corrigindo algum trabalho. De repente, chega algum colega e não me cumprimenta,simplesmente não me vê”. Entendi.
Algum tempo depois, tomei conhecimento de uma experiência ainda mais chocante. Fernando Braga Costa é professor no Departamento de Psicologia Social da USP. Para escrever sua tese sobre invisibilidade pública, Fernando, com autorização do reitor, passou a trabalhar como gari, durante um turno, na instituição onde leciona. Vestiu o uniforme de gari e foi à luta. Trabalhou por alguns anos varrendo, catando latinhas de refrigerante, limpando o espaço da mais famosa instituição de ensino do país. Nunca foi reconhecido por nenhum colega, aluno ou servidor da USP. O uniforme de cor laranja simplesmente tornou-o invisível. A experiência radical rendeu-lhe um belo livro que comprova a tese da invisibilidade pública em função do trabalho que o indivíduo realiza.
Lembrei-me dessa história ontem ao entrar na fila do caixa de um dos supermercados de Teresina. Até bem pouco tempo, havia caixas específicos para gestantes, velhos, manquitolados, etc. Para “agilizar o atendimento”, os que decidem por nós entenderam que melhor seria estender esse “privilégio” a todos os caixas. Na teoria, um ganho; na prática, um desastre. Os “privilegiados” simplesmente tornaram-se invisíveis. A estratégia de quem está na fila é simples: não olha para trás, não toma conhecimento dos teriam o direito de ser atendidos prioritariamente. O caixa, ocupado demais com suas funções, também nada vê. E a fila segue o seu curso.
Ao que interessa: na fila do caixa, à minha frente, duas senhores joviais tricotavam: falavam de festas, filhos, trânsito, violência, etc. Atrás das senhoras, um jovem,com ar de anestesiado, manipulava seu tablet, alheio aos ruídos do mundo.Quando finalmente chegou a minha vez, a moça do caixa, fez a pergunta mecânica: “O senhor é cadastrado?”. Afirmei: sim. Sou cadastrado na categoria dos invisíveis. A funcionária, com visível enfado, disparou: “Não entendi”. Rebati de bate-pronto: quando a senhorita chegar à minha idade – se chegar – entenderá perfeitamente.