Que as feministas (ainda as há?) de plantão não me queiram escalpelar, mas chuteira é que nem mulher:quando encontramos uma que se ajuste às nossas exigências, é preciso tratá-la com cuidado,carinho,zelo e desvelo. Não fosse assim, como explicar a reação de são Francisco Buarque de Holanda em Roma? Em pleno inverno italiano, Chico juntou um punhado de celerados e foi disputar uma pelada num campinho recoberto de neve e lama. Pegou um bruto resfriado, mas a sua queixa foi por outra razão: a camareira jogou suas enlameadas chuteiras no lixo. Chico, febril, esbravejava: “Essa chuteira tem história. Mais de cem gols e milhares de assistências”. Não era apenas uma chuteira; era a chuteira.
Eu também tive uma. Numa época em que as chuteiras eram botinas rústicas, feitas com sola e travas pregadas com tachinhas, comprei ao Saraiva um par de chuteiras especial. Entre outros luxos, eram acolchoadas por dentro, costuradas à mão. Depois de cada partida, eu tratava de limpá-las, engraxá-las e acomodá-las em local seguro. O problema é que, por falta de graxa, eu usava sebo de carneiro com pó de carvão. Vai que, um dia, um rato esfomeado, resolveu roê-la. Fez um estrado significativo no pé direito. Tentei remendar, mas a desgraça já estava feita. Ainda assim, continuei a usá-la em ocasiões especiais.
Deu-se que,um dia, eu e um punhado de amigos, na comunidade Tanque do Fabrício, resolvemos construir um campinho e comprar uma bola de couro, artigo raro e caro. Quando chegou, foi uma celebração. A bola era totalmente branca, lua cheia num céu de setembro... Dois ou três treinos depois, decidimos desafiar o time do povoado Tranqueira para um jogo decisivo. As duas comunidades não se bicavam: resolvemos tirar a diferença em campo. O problema é que o adversário tinha tradição futebolística: em mais de uma oportunidade, vencera a seleção de São Raimundo Nonato. Juntamos a cabroeira e rumamos para o confronto mortal. Parecíamos o Exército de Brancaleone: dois ou três tinham chuteiras; alguns calçavam sapatos velhos; outros, botas, e apareceu até um usando um borzeguim. Montados em bicicletas, cavalos, jegues, marchamos resolutos. Dada a importância do jogo, resolvi usar minhas chuteiras especiais.
Como não tínhamos uniformes, o time da Tranqueira jogou de camisas brancas; nós, sem camisas. Não demorou muito, um gaiato, na torcida, percebeu minha chuteira rasgada e gritou: “A chuteira do galalau vai parir durante o jogo!”. Caí em desgraça: cada vez que tocava na bola, as vaias formavam um coro insuportável. Mas futebol, como diriam os cronistas, “é uma caixinha de surpresas”. Nosso time era muito ruim. O único que efetivamente jogava – o Paredão – estava contundido. Para piorar a situação, o goleiro deles era o Bocão, centroavante conhecido que, por estar com o pé machucado, resolveu jogar no gol. Era também excelente goleiro. Como celerados, corremos, forcejamos, distribuímos pontapés sem dó nem piedade. No finalzinho do tempo regulamentar, nosso ponta esquerda, que era meio vesgo, fez um cruzamento forte, rasteiro, a bola raspando o chão. Antecipei-me ao zagueiro e desviei-a para o fundo das redes... Eufórico, corri na direção da torcida hostil e berrei a toda brida: a chuteira pariu gol, bando ferrados! Por muito pouco, não fui linchado.
Durante muitos anos, guardei as velhas chuteiras numa caixa de papelão como um talismã. Um dia, dona Purcina resolveu “dar uma geral” na casa e mandou minhas chuteiras grávidas de gols para o reino do vai não torna... Ainda me fazem falta.