Há quem afirme ser Jorge Luis Borges a figura mais representativa da literatura latino-americana. Falta-me competência para confirmar ou negar. Particularmente, gosto de sua ficção na qual se mesclam rusticidade e magia. Entre seus contos, figura A Intrusa, uma narrativa machista, áspera, feroz. Resumindo ao extremo, é a história dos irmãos Nilsen, Cristián e Eduardo. Vivem numa casa velha em Turdera, longe de quase tudo. De origem desconhecida, teriam sido “tropeiros, rebocadores, ladrões de gado e, vez ou outra, trapaceiros”. Beberrões, briguentos, eram temidos na região. Um dia, o irmão mais velho resolveu comprar (isso mesmo) uma mulher – Juliana – como quem compra uma mula. Sua função na casa: servir e servir. Sem voz, sem vez, sabe-se apenas que tinha “olhos rasgados”. O dono da serva autorizou o irmão mais novo a servir-se dela quando lhe aprouvesse. E assim se fez. Mas a mulher, mesmo não passando de uma sombra que trabalha, acaba provocando a cizânia entre os dois. O dono resolveu vendê-la a um prostíbulo. Não solucionou o problema: o irmão mais novo continuou a frequentá-la. Cristian decidiu recomprá-la e levá-la de volta para a casa. Os dois, envergonhados, se descobrem apaixonados por Juliana, sentimento insuportável para animais tão toscos. Tacitamente, decidem que é preciso eliminá-la. Ponto final.
Deixemos Borges com as estrelas e desçamos ao chão do canil. Crio cachorros desde sempre. Cheguei a ter 6; hoje me limito a três. Tem o Dunga, um vira-lata mestiço, cordato, tão delicado que não hesitaria em dizer a um ladrão que se aventurasse a entrar no meu quintal: “ Pegue o que quiser, só não perturbe o sono do meu amo”. Já o Tião é um vira-lata metido a pinscher, elétrico, desconfiado, arredio, com aquele ar de “fiz, mas você não tem provas contra mim”. Os dois sempre se deram muito bem. O Tião planejava pequenas traquinagens e o Dunga as executava sem pensar. De tão amigos, um não ficava no canil sem o outro. As coisas estavam nesse pé, quando a Priscila entrou em cena. Um furacão, um tornado, um tsunami, para dizer o mínimo. Ao contrário da Juliana, uma sombra que fazia, a Prici é um turbilhão que desfaz. Vestida de viúva alegre (branco, preto e mostarda), passa o tempo inteiro “inticando” , pulando,correndo, aprontando. Dona Áurea pôs nela o apelido de Bruna Surfistinha. Não me perguntem por quê.
Num átimo, semeou a discórdia entre os dois irmãos que, agora, vivem às turras. Quando entrou no cio, tive de separá-la dos dois para evitar o pior. O canil tornou-se um inferno: onde reinava a canina harmonia, hoje vicejam a desconfiança, a malquerença, o ódio... No domingo passado, fui banhá-los e percebi algo que me deixou preocupado: um brilho esquisito nos olhos do Dunga e sujo de ruindade no olhar do Tião. Deus queira que eu esteja enganado, mas a intrusa do canil pode ter o mesmo fim da sofrida e opaca Juliana do Borges. Que Deus abrande o coração dos dois ou se apiede da alminha trêfega e leviana da Prici.