Durante alguns anos (infância e adolescência) vivi em São Raimundo Nonato, cidade com enorme capacidade de surpreender, quase sempre negativamente. Ainda não me acostumei com isso. Três exemplos: na semana passada, eu e um grupo de amigos fomos a São Raimundo prestigiar o lançamento do livro A Natureza do Piauí, de André Pessoa e Sérgio Adeodato. O livro é uma síntese dos quase 30 anos de andanças do fotógrafo e ambientalista André pelo Piauí, fotografando, registrando e, quase sempre, denunciando crimes ambientais. Na festa de lançamento, no auditório da FHUNDAM, não havia uma única autoridade do município, nem mesmo um desses políticos espertalhões que, em período de eleição, ganham o dom da ubiquidade, à caça de votos. A despeito disso (ou talvez por isso) a festa foi um sucesso. Por minha conta e risco, afirmo: este livro fará mais pelo Piauí do que toda a propaganda oficial do governo, de qualquer governo, diga-se.
A segunda surpresa nos deixou indignados e estarrecidos: o acesso ao Museu do Homem Americano está intransitável: são buracos dentro de crateras. Não podendo destruir a obra extraordinária da arqueóloga Niède Guidon, os administradores da cidade tentam impedir que os visitantes cheguem ao Museu que encheria de orgulho qualquer cidade do mundo. Niède está pagando caro por ter incluído São Raimundo no mapa-múndi; por ter dedicado a vida inteira a proteger vidas; por ter a coragem de peitar prepotentes e arrogantes de todos os matizes ideológicos. Na sua fala, fez questão de afirmar que o seu esforço “foi em vão”. Está triste, amarga, mas firme com as rochas da Serra da Capivara.
A última das surpresas foi gratificante, para dizer o mínimo. Num dos bairros mais pobre da cidade, um garoto de apenas 20 anos de idade, com a ajuda do pai e de um punhado de amigos, está tocando um projeto de grande alcance sócio-cultural: “Acordes do Campestre”. O garoto é o sanfoneiro Sandrinho do Acordeom que poderia estar tocando em qualquer bando do Brasil. Sandrinho é um desses talentos inatos e com senso de responsabilidade proporcional ao talento que possui. Sem o
apoio da municipalidade, mantém – sabe Deus como – o projeto que está mudando a vida da molecada do bairro Campestre. Sem espaço adequado para receber os 60 alunos inscritos no projeto, Sandrinho e os parceiros ministram aulas em espaço aberto, nos finais de tarde, quando a temperatura se torna suportável. Ali, meninos e meninas, de 5 a 17 anos, recebem aulas de acordeom, violão, flauta doce, percussão e, principalmente, cidadania.
Como sou professor, inscrevi-me no projeto como voluntário. A primeira tarefa que me impus: criar um embrião de biblioteca no bairro. Com livros e disposição, poderemos vencer até a indiferença dos que têm o dever legal de fazer e não fazem. Quem viver verá.