“A maldade dessa gente é uma arte”, afirmou Ataulfo Alves num samba que entraria para o rol dos clássicos da MPB. O compositor falava de um caso específico (a perda de uma certa morena...), mas o verso tem uma abrangência muito maior e continua incomodamente atual. O brasileiro, além do jeitinho, tem, entre suas especialidades, a finta, o drible, a sutileza de enganar com engenho e arte. Poderíamos citar aqui uma centena de exemplos, vamos nos ater a um.
Circula na internet (é sempre bom ficar com um pé atrás) uma pérola em matéria de maldade dissimulada. Sutilmente, a peça vem embalada num elogio, um rasgado elogio, se me permitem o adjetivo rebarbativo. Vejamos: trata-se de uma foto do ministro do STF Joaquim Barbosa, de costas, envergando sua toga negra. Na parte inferior da fotografia, em letras garrafais: “BATMAN É PARA OS FRACOS. MEU HERÓI É NEGÃO. USA TOGA PRETA E ESTÁ EM BRASÍLIA LUTANDO CONTRA OS MAIORES VILÕES DA HISTÓRIA DO BRASIL. OBRIGADO, MINISTRO JOAQUIM BARBOSA”.
Até aí, tudo bem: assim se criam os heróis. Alguns têm origem menos nobre como os fabricados por Pedro Bial. A louvação ao bravo ministro vai num crescendo: “Ele é a prova maior de que, quando queremos, tudo podemos. Um grande exemplo de dignidade e honradez. Ex-faxineiro, limpava banheiros no TRE do DF. Filho de uma dona de casa e de um pedreiro, dividia o tempo entre os bancos escolares e a faxina no TRE. Apaixonado por línguas. Um dia, o mineiro, na certeza da solidão, cantava uma canção em inglês, enquanto limpava os banheiros. Naquele momento, o diretor do TRE entrou e achou estranho uma pessoa da faxina ser fluente em outro idioma. A estranheza se transformou em admiração e, na prática, abriu caminho para outras funções. É fluente em francês, inglês, alemão e espanhol. Formou-se em direito pela UNB, sendo à época o único negro da faculdade. Passou nos concursos de Oficial de Chancelaria, Advogado do Serviço Federal, Procurador da República e professor da UFRJ”. Uma bela história. Um exemplo edificante, diremos nós. Mas a peça ainda não está concluída. Eis a chave de ouro: “ELE NÃO PRECISOU DE COTAS PARA CURSAR A UNIVERSIDADE”.
A mensagem não poderia se mais elucidativa: se você é um cidadão negro, perdão, afrodescendente e, aos 50 anos, continua sendo faxineiro, estivador, feirante, motorista ou entregador de pizza, a “culpa” é toda sua. Vivemos numa “democracia racial” onde brancos, negros, índios, pardos, cafuzos, curibocas, sararás e assemelhados têm as mesmas oportunidades. Cotas nas universidades e outras políticas afirmativas são para “fracos”, “incompetentes” e “preguiçosos”. Ignore as adversidades, mire-se no exemplo do vitorioso ministro e cresça.
Não nos parece descabido terminar este arremedo de crônica com os versos do compositor João do Vale que, como Ataulfo Alves e Joaquim Barbosa, também era negro: “Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão / que também foram meus colegas e continuam no sertão / não puderam estudar e nem sabem fazer baião”. Mais claro, impossível.