No segundo dia de sufoco, a jovem universitária ligou para um amigo: “Estou indo pra casa da vovó, no interior. Agora sei o que o professor quis dizer quando falou de não água”. Por acaso, o professor citado pela moça sou eu. Aos fatos.
Há coisa de uns quatro anos, se não me trai a memória, organizou-se, em Teresina, um grande seminário para discutir a questão da água no planeta. Vieram especialistas de todas as procedências e versidades. Por razões que ainda hoje não descobri, incluíram-me entre os palestrantes. Sempre que me convocam para tarefas complicadas, recorro às minhas infalíveis fontes de consulta: Almanaque Bistrol e Lunário Perpétuo, bem mais confiáveis que Google e Wikipédia juntos. Descobri que, desde que este planeta existe, cai sobre ele a mesma quantidade de chuva, ou seja, o volume de água permanece o mesmo, o que vem se alterando significativamente é o uso que se faz dela. Mas que novidade há nesta informação se até eu a conheço? Confesso que cheguei ao local do encontro (Rio Poty Hotel) sem saber nem mesmo por onde começar. Por falta de melhor opção, fiz o que fazem os médiuns nos terreiros: transformam-se em cavalos à espera do santo. Deu certo.
Falei mais ou menos isso: Minhas irmãs, meus irmãos, não sei exatamente o estou fazendo aqui entre especialistas em água, quando a minha especialidade é justamente a não água. A frase provocou certo estranhamento. Sem dar tempo de a plateia pensar, emendei: Onde nasci, sertão do Caracol, não havia rio, riacho, lagoa, açude nem mesmo uma prosaica cacimba. Dependíamos das chuvas que, raramente, vinham. Foi aí que meu pai, aproveitando-se de um baixio no terreno, construiu um barreiro de 10X10 m. Quando chovia, tínhamos água para atravessar a estiagem, que durava, em média, uns 7 meses. Bebia-se muito pouco e banho, só aos sábados. Quando me mudei para São Raimundo Nonato, a situação piorou: nem barreiro tínhamos. Ao romper do dia, peregrinávamos por cacimbas sovinas à caça de água. Para mim, a expressão “precioso líquido” é bem mais que um clichê. Terminei minha arenga, afirmando: Como devem ter percebido, não posso falar de um produto que mal conheço. A minha especialidade é, portanto, não água. O discurso troncho comoveu a plateia.
Nascida e criada em Teresina, a jovem do início da crônica não poderia imaginar que, sem aviso prévio, numa manhã qualquer de outubro, a água pararia de jorrar das torneiras, e a cidade mergulharia no caos. A pane no sistema de abastecimento de água da cidade, na semana passada, deve ser encarada como um sinal de alerta: pode repetir-se com alguma frequência. Segundo a imprensa, a estação de captação e tratamento de água está “ completamente sucateada”.
Cena curiosa: na hora do sufoco, gente que nunca parou para olhar o estado em que se encontram os rios de Teresina foi até o cais do Parnaíba comprar água aos lavadores de carro, justamente eles que emporcalham o rio permanentemente. Como dizia o filósofo Malaquias, “Quem ensina a gemer é a dor”.
