Já repeti isso uma centena de vezes: onde nasci não havia livros nem água potável. Seria exaustivo dizer o que não existia. Só posso lhes assegurar que, em matéria de cultura, não havia nem cego rabequeiro. Aridez total. Havia, por sorte, as narrativas de trancoso, quase sempre pavorosas. À noite, na calçada da casa velha, enquanto se debulhava milho ou feijão, contavam-se histórias de lobisomem, caipora, mula-sem-cabeça, almas penadas. Resultado: molhávamos as tipufas, redinhas construídas com o tecido de saco de açúcar. Naquele mar de aridez, até as pedras eram magras.
Vai que uma noite, minha tia Odete ( ainda viva) resolveu cantar (isso mesmo) uma história comovente. Durante muito tempo, pensei tratar-se do romance do Pavão Misterioso. Não era. Essa maravilha veio algum tempo depois. Era a história de uma onça faminta que, no período da seca, come a bezerra de um capitão. A onça, perseguida por um cachorro feroz, tenta argumentar, invoca a lei da sobrevivência, mas acaba morta. Não me perguntem como a bichana morta poderia narrar sua própria tragédia. Só posso garantir o seguinte: ao contrário do que pensam alguns, o surrealismo não nasceu com Breton. Nasceu com o homem.
O certo é que, naquela noite fria de junho, a poesia “alojou-se em minha vida”, como diria o poeta Salgado Maranhão. Depois de ouvi-la, com os olhos marejados, prometi à tia amada que, quando crescesse, queria fazer aquilo. Eu nem suspeitava que aquilo tinha um nome: poesia. Até então, para mim, a carta de ABC era pouco menos que um suplício. Aprender a ler não me parecia tarefa atraente nem necessária. Quando descobri que os folhetos, que chamávamos de romanços, estavam recheados de aventuras, beleza e magia, aprendi a ler em dois tempos. A partir de então, li todos os folhetos que me caíram às mãos e, aos doze anos de idade, até me aventurei a escrever um, em parceria com meu irmão mais velho. Por sugestão dele, o tema não poderia ter sido mais infeliz: O Namoro de hoje em dia, uma versalhada porca com expressões chulas e versos de pé-quebrado. Surpreendido por dona Purcina lendo a peça literária, foi agraciado com 12 lambadas de cipó de marmeleiro. Comecei bem minha vida literária.
No curso ginasial, descobri Gonçalves Dias, Castro Alves, Bilac, Raimundo Correia, Olegário Mariano e até um cidadão de nome impronunciável: Menotti Del Picchia. Tornei-me um devorador de poesia. Mais tarde, vieram Bandeira, Drummond, Cecília, Quintana e os outros... Leio poesia todos os dias como um crente lê os versículos de sua bíblia judiada.
Tudo isso é apenas para dizer que, para mim, 14 de março é apenas mais um dia para ler poesia e não, necessariamente, o Dia Nacional da Poesia. Quintana, meu padroeiro, tinha razão: “Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia”.