Minha caminhada rumo à negritude não é fruto de uma atitude consciente nem oportunista. Simplesmente, aconteceu. Quando, no remoto ano de 1948, registraram-me num cartório do Caracol, eu era branco de cabelos castanhos e olhos claros. Quando me apresentei ao exército em 1965, promoveram-me a pardo, de cabelos crespos e olhos escuros. Hoje, na senescência, sou apenas um negro velho de olhos baços e carapinha branca. Estou mais perto dos meus.
Num país em que, durante muito tempo, perseguiu-se o processo de branqueamento como trampolim para a ascensão social e econômica, fiz minha viagem étnica na contramão. É certo que, antes de mim, outros fizeram sua opção preferencial pela negritude. Vinícius de Moraes, por exemplo, afirmava ser “o branco mais negro do Brasil”: os sambas-afros que compôs com Baden Powel o confirmam. Vinícius faturou muitas, perdão, muito como “negro”; eu, não. Não fui beneficiado pelas “políticas afirmativas”; não cheguei à universidade catapultado pelas cotas; nunca recebi bolsa, abono, auxílio... Sou apenas um negro velho pobre.
Não me lembro se, alguma vez na vida, sofri discriminação pelo fato der ser negro. É certo que, em discussões acaloradas, notadamente no futebol, foi chamado de sarará, curiboca, negro-branco e coisas menos nobres. Certa feita, o compositor Fifi, hoje Dr. Feliciano Bezerra, venceu um festival com a canção “Coisa de Negro” , cuja letra é minha. Na saída do Theatro 4 de Setembro, alguém disparou: “Justamente o Cineas que nem é negro direito!”. Recorri a um especialista em negritude para saber o que seria um “negro direito”. O cidadão explicou-me: “um negro a caráter, com aritude”. Entendi: um negro fantasiado de negro. Ao contrário daquele ex-presidente que tinha “um pé na cozinha”, sempre tive o coração na senzala. Como diria o poeta, “trago no embornal do peito as dores da raça”. Acompanho, com o maior interesse, cada conquista de um dos nossos: é bom ver negro brilhando além dos campos de futebol e das rodas de pagode.
As coisas seguiam o seu curso normal, até que abro a Folha de São Paulo e me deparo com a declaração de um “pastor cheio do Espírito Santo” que afirma serem os africanos “descendentes do filho amaldiçoado de Noé”, um certo Cam ou Cão. Resolvi investigar: “A maldição de Cam foi usada por alguns membros de religiões abraâmicas para justificar o racismo e a escravidão eterna de negros africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam”.(Wikipédia)
A arenga não teria maiores consequências não fosse o pastor “iluminado” também deputado e “ungido” presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Aí, a coisa muda de figura: o cidadão é pago por nós. Como me senti ofendido, recorri às armas de que disponho: um bodoque, que trouxe do sertão do Caracol, e uma capanga cheia de pedras de fogo. Estou partindo para Brasília onde pretendo engajar-me na luta contra o embusteiro falastrão. Para um homem com a minha história, a pecha de “descendente do Cão” é inaceitável. Cabeças vão rolar!