Fazia um tempinho que eu não me concedia uma semana inteira de sertão. E o sertão que me habita, às vezes, me cobra isso com tamanha intensidade que não posso deixar de atendê-lo. Assim, enquanto muitos ainda curtiam a ressaca do Natal, arrumei os teréns e rumei para São Raimundo Nonato, hoje, um estaleiro de ausências: diletos amigos partiram em curtíssimo espaço de tempo. A bem da verdade, embora tenha vivido alguns anos na cidade, nunca me senti um são-raimundense. Faltam-me alguns atributos, digamos assim. Não como tatu, não gosto de umbuzada e não curto a famigerada festa de agosto, expressão mais legítima do orgulho nativo. Sou apenas um catingueiro de Campo Formoso.
Em São Raimundo, além do carinho dos familiares que ainda residem na cidade, ganhei dois irmãos queridos: Jorginho França e André Pessoa, o fotógrafo que mais entende de caatinga no Brasil. André propiciou-me a visita a um dos mais belos sítios da Serra da Capivara, o Baixão das Andorinhas. Não bastasse a visão do conjunto, que é de tirar o fôlego, mostrou-me uma gruta com pinturas rupestres descobertas há pouco tempo. Entre, os desenhos, a figura de uma mulher com os dois seios bem evidentes. Com certeza, esse desenho vai rivalizar com a famosa cena do “Beijo”. Imaginem o que ainda há por ser descoberto naquele dilúvio de belezas.
Decidi passar o primeiro dia do ano na casa da irmã mais nova em São Braz do Piauí, terra dos meus ancestrais. Pouca coisa restou que valha a pena falar, exceto a igrejinha centenária erigida pelo velho José Malaquias das Chagas, meu avô materno, que continua feia e firme, desafiando o poder corrosivo do tempo.
Em Anísio de Abreu (para mim,Tamanduá), encontrei aquela que,um dia, teria sido a minha prometida: dona Lina, a moça do vestido cor-de-rosa, uns dez anos mais velha do que eu, com quem eu pretendia me casar,tão logo regressasse de São Paulo, com uma sanfona azul, um relógio Lanco, um sapato bicolor, um anel de rubi, um rádio Philco e um dinheiro graúdo. Nem cheguei a ir a São Paulo, e a Lina, moça feita, tinha pressa e um enxame de pretendentes...
Como já estava a caminho, resolvi dar uma esticada até o Caracol onde ninguém sabe quem sou. Na verdade, fui procurar as nascentes do rio Piauí, transformado em escoadouro dos efluentes indesejáveis das cidades que banha. No leito do rio morto, construíram algumas barragens inúteis: além da água salobra, todas estão assoreadas e poluídas ao extremo. O que vi me deixou bastante desacorçoado, como diria seu Liberato.
Voltei convencido de que o Conselheiro tinha razão: o sertão já virou mar. Um mar de antenas parabólicas, motos, celulares, tablets,carros de som, bugigangas made in China e forró de plástico. Hoje, o sertão que me habita, lúdico e lírico, só existe em mim...