No final da semana passada, uma hérnia renitente, que me azedava o humor, levou-me à mesa de cirurgia. Na sala, com aquele camisolão ridículo, touca e pantufas descartáveis, comecei a sorrir. A equipe que realizaria o procedimento médico deve ter pensando que eu fora acometido por uma crise nervosa. Na verdade, duas lembranças ocorreram-me quase que simultaneamente. A primeira, um poeminha irônico do Quintana: “Perdão!/Eu distraí-me ao receber a Extra-Unção./Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro/eu pensava era nos meus primeiros sapatos/que continuavam andando/que continuam andando/ - rotos e felizes! - /pelas estradas do mundo”. A segunda, uma preocupação de dona Isabel, a velha maluca que criou dona Purcina, minha mãe.
A velha Zabel, como era conhecida, tinha “fama” de doida e fazia por merecê-la. “Doida de fumar dinheiro”, dizia-se. Alta, desempenada, pele acobreada, imensa cabeleira, fumava cachimbo, bebia Conhaque de Alcatrão de São da Barra, trabalhava nos eitos e, se necessário, saía no braço com quem ousasse desacatá-la. Certa feita, numa bodega no povoado São Braz, depois de uma discussão com uns lavradores da região, sacou da faquinha, picou fumo de rolo, fez um cigarro com uma cédula de dez mil réis e, para espanto de todos, fumou o insólito cigarro ali, desafiando aqueles infelizes a imitar-lhe o gesto. Ninguém se habilitou.
Era uma velha sistemática, autoritária, com voz aflautada que dava ordens até ao vento. Não cortava o cabelo e, ao lavá-lo com sabão decoada, tinha o cuidado de pegar cada fio que se desprendia da cabeça para guardá-lo numa meia feminina. Quando lhe perguntavam por que fazia aquilo, explicava: “No dia do Juízo Final, todos os corpos terão de se apresentar completos diante do Criador, sem tirar nem pôr. Não quero perder tempo caçando fios de cabelo perdidos por aí”. Nada além.
Foi aí que, antes da raque me tirar do ar, pensei: se eu sair de cena agora, não terei tempo para reencontrar os cacos de mim perdidos pelo mundo ao longo dos 65 anos que vivi neste Val de lágrimas. O umbigo,
segundo me contaram, ficou enterrado na porteira do velho curral em Campo Formoso, onde também teriam ficado os dentes de leite. Depois, fui deixando unhas arrancadas e carapuças de dedos nos campinhos de futebol; também perdi chumaços de cabelos mastigados pela tesoura cega do Zé Lino... Já em Teresina, vi o apêndice inflamado e pedaços de tecido da próstata serem misturados ao lixo hospitalar sem a menor consideração... Mas, naquele momento, o que mais me angustiava era como recompor meu velho coração fatiado... Pedaços de um coração bandoleiro que, de boa fé, confiei a pessoas levianas... Irmãos e irmãzinhas, eu vos asseguro: viver é desintegrar-se constantemente. E isso, às vezes, dói.