Carta da Solidão
Às vezes, tens vontade de morar sozinho. Ou de não permitir a entrada de ninguém neste asséptico buraco de rato que é que é a tua biblioteca.
Com efeito, pareces ter razão em te irritares quando encontras uma folha de jornal rasgada justamente naquela parte que tinhas guardado para leres depois, mas alguém a pegou para embrulhar uma louça, ou para limpar as fezes do cachorro, ou para limpar o vidro da janela, ou para limpar o pior dos excrementos animais. E essa última possibilidade aumenta a tua fúria consideravelmente. Muito mais do que naquela madrugada em que acendeste a luz do abajur para continuares a leitura de “O Caçador de Pipas”, e tua mulher, que só dorme no escuro total, num rompante virou de lado, quase pulando da cama e te dando as costas.
Quem praticou blasfêmia de extraviar o que ias ler? É tarde para saber, até mesmo porque outras muito piores já foram perpetradas antes, como naquela ocasião em que teu sobrinho foi surpreendido pela mãe, lendo um livro de poesia erótica de Bocage, e ela se achou no direito de te esculhambar, chamando-te de imoral e devasso. Ou como nas várias vezes em que algumas pessoas entraram nesse teu santuário de leitura e fizeram a pergunta clássica de todo analfabeto literário: “Você já leu todos esses livros?” Ou quando algum elemento pérfido, fingindo ser teu amigo, furtou de lá aquele exemplar antigo de “As Flores do Mal”, que gostavas de ler tomando uma taça de vinho tinto. Ou quando aquele gatuno que entrou lá, achando que eras um homem rico que guardava dinheiro dentro dos livros e jogou quase todos no chão. Ou como naquela tarde em que saíste mais cedo do trabalho para reler comparativamente um poema do piauiense Newton de Freitas e um conto do Prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer sobre a perda da fé cristã, e surpreendeste o namorado de tua filha cochilando na tua poltrona.
Queres morar sozinho? Ou vais proibir a entrada de outras pessoas na tua biblioteca? A segunda opção é melhor. Se fores viver sozinho, se decidires me desafiar, vais ter que suportar o peso dos esteios sobre os quais assenta uma grande parte dos monumentos literários: o ônus da solidão.
W. Ramos