Outra Escalada
À memória de Da Costa e Silva, o primeiro a ter destaque fora do Piauí e o nosso poeta mais telúrico.
Muito me custa subir esta ladeira Da Costa! Ela não ascende para a luz nem para a glória. Mas para o meu pior pesadelo, para o encontro com alguém que eu não gostaria de rever.
Estou um pouco cansado, pois já venho lombando a pé desde o S. Cristóvão. Muita gente já passou por mim de carro e fez que não me viu ou que não me conhece. Têm vergonha de dar carona para um cara como eu, já quase beirando a sarjeta. Pessoas para quem já paguei jantares em restaurante finos, numa época em que elas sequer ousariam sonhar em entrar numa churrascaria qualquer. O Júnior é uma delas. Chegou aqui em Teresina, puxando a cachorrinha! E eu ajudei esse deslumbrado de merda em muita coisa. Agora, só porque está rufiando uma professora universitária, finge que não me conhece. Ainda agorinha mesmo na ponte, olhei para trás e meu olhar bateu com o seu. Levantei o braço pedindo carona, mas ele olhou imediatamente para o retrovisor esquerdo e depois para os outdoors que ficam nesta ladeira. Dava pra ele ter parado. O trânsito na ponte estava ótimo. Poucos carros. Mas tudo bem. Só espero nunca mais encontrá-lo, pois sou capaz de dar-lhe um chute nos quibas e quebrar-lhe umas duas costelas, já que não vou sujar minhas mãos, batendo em sua cara lambida de rufião.
Já estou com as pernas meio bambas, Da Costa. Mas tenho que continuar subindo esta ladeira, embora quase como um farrapo humano. Não como tu, cujo espírito paira além dos astros. Vou subindo e pensando em Fátima, minha ex-mulher. Ela recusará me pagar a pensão? É decente eu receber a droga dessa pensão? Se eu receber, vou ficar tranqüilo depois? Um homem sustentado por mulher! Isso está direito? Não seria melhor eu procurar alguns desses meus amigos que têm cargo importante no governo? E se nenhum deles me receber? Não! É humilhante também! Mas ir falar com a Fátima é humilhante do mesmo jeito. Ela está até mais bonita! E eu, tão diferente do que já fui. Eu, que fui abandonado por ela; que não soube evitar a falência da minha empresa; que estou devendo a Deus e ao mundo; que, aos 45 anos, estou com aparência de 75; que estou deixando o álcool e o cigarro corroerem minha vida. Eu, homem dos séculos XX e XXI, para quem o ventre maternal da natureza, Da Costa, não é mais virgem nem muito fecundo. Mas eu preciso terminar de subir esta ladeira, Da Costa! Nem que seja para a Fátima me repelir, me ironizar, me enxotar como se enxota um vira-lata! O escritório dela é logo ali mesmo, nesta Frei Serafim, perto do HGV. Depois que eu sair de lá, vou direto tomar alguma coisa, de preferência uma dose de cachaça, para senti-la entrar rasgando, queimando, devastando o que ainda resta de fibra em mim Mas estas palpitações, esta tontura, este cansaço, esta falta de ar, esta sede... Estou caindo... Minha cara está indo de encontro à calçada... Ah... Eu preciso... Ah... Aiii... Ah...
W. Ramos