“As palavras irradiam a capacidade de comunicação
para os domínios mais amplos da vida e das forças
que a integram, modificam-na e a expressam”
Johann Gottfried Herder
Ler a obra de arte é extrair suas múltiplas faces e redesenhar sua forma; é construir nas entrelinhas nossas próprias impressões e intenções e a partir delas, novas histórias.
“Um poema nunca se acaba; apenas se abandona” – essa citação de Paul Valèry é um atestado de inesgotabilidade do texto literário e a confirmação do entrecruzamento de vozes, ideologias, intenções, que dão ao texto um caráter multifacetado.
Só mesmo a literatura para conduzir a máquina do tempo e do mundo com a austeridade de um motor voraz. Só mesmo a Literatura para transformar palavras em blocos de cimento e água capazes de empilhados sedimentarem o universo imaginário dos leitores insaciáveis e, desordenados, transformarem-se num verdadeiro labirinto, capaz de desafiar o leitor para um combate intelectual. Ler é revisitar o passado quando este se faz presente nas relações cotidianas da vida, é repousar a vista sobre letras e frases e orações e textos que contam as nossas e outras histórias – daí ser o leitor um co-autor.
Incansavelmente tenho propagado (como leitor, apenas) que o texto é um todo orgânico cuja existência física reside no objeto cultural. A relação de posse do sujeito criador sobre o texto acaba à medida que este é publicado e destinado à leitura. Por esse motivo Valéry afirma nas entrelinhas do seu poema a existência de um continuador do produto literário (provavelmente o leitor).
Em outra leitura revela as infinitas possibilidades de criação e recriação da linguagem confirmando a impotencialidade humana de registrar tudo com a perfeição inatingível de quem busca quase que incansavelmente, o melhor vocábulo para traduzir suas impressões sobre pessoas, fatos, coisas, e no final (se é que há) é vencido pelo “poder insubmisso da linguagem”.
Não há quem construa um romance, um filme, uma música... sozinho; há sempre o entrecruzamento de vozes, ideologias, intenções, conforme destaquei no início. Basta compreender o exemplo dos livros que ao serem postos em prateleiras se tornam alvos não só do olhar, mas da consciência (de criação e recriação) de seus leitores.
Assim, confirma-se a idéia de que “cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída. A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e o seu destinatário.”, pois a infinidade de conotações reflexivas que ele tem pode ser descrita como uma viagem ou um transe entre o consciente e o subconsciente.
É no texto que o sujeito criador deposita seus desejos e alucinações, seus sonhos e intenções. É nele também que esse mesmo sujeito se perde e se engana, reafirmando o que se propagou entre os mais aguçados críticos – o domínio da Palavra é infinitamente superior às intenções da obra.
Por esse motivo não há como negar que a Palavra bíblica e literariamente conduz o homem, aplica-lhe golpes certeiros, embriaga-lhe através de mergulhos profundos, dionisíacos.
Os instantes de êxtase e sublimação são divididos com o leitor cuja relação, paradoxalmente, não é apenas a de um mero expectador e consumidor de histórias criadas à luz da imaginação de um espírito fértil, mas a de um construtor de nuanças a partir de linhas que o sujeito criador jamais imaginou existir na matéria que ele próprio amoldou.
Assim o leitor ousado é capaz não só de consumir histórias como também de chegar fundo na raiz delas, e como se lhe faltasse tino para a produção injeta-lhes genes de sua própria matéria numa busca constante da auto-identidade, da auto-afirmação.
Como o Áporo de Drummond que “cava / sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape...” o projeto de construção do texto está intrinsecamente ligado à busca do “eu” (leitor) no universo de criação do outro (poeta, romancista, contista, teatrólogo...).
Neste caso as histórias contadas e escritas, dramatizadas ou lidas, revelam sempre as nossas intenções mais audaciosas entre tantas reprimidas.