Livro: agente de (trans)formação cultural
“Que nunca livro fique longe de
tuas mãos e de teus olhos...”
(São Jerônimo)
Um bom livro é aquele capaz de transportar o leitor para o universo de suas páginas e aguçá-lo os pensamentos mais profundos. Aquele cuja função é retirar do isolamento cultural até mesmo as mentes mais tacanhas.
Um bom livro na verdade é aquele capaz de transformar o mero expectador de histórias em leitor potencialmente crítico, capaz de reconhecer desejos e sensações próprios de sua natureza, mas que se achavam recolhidos.
Não raro, os leitores, temos nos deparado com situações cotidianas descrita nos livros semelhantes às nossas e que jamais imaginávamos compor uma obra de arte. Mas é justamente da simplicidade das coisas que se constrói uma obra literária, uma música, uma pintura, uma escultura...
A verdadeira obra de arte não abre espaço para o supérfluo, ela filtra o que há de mais natural e verdadeiro, para só depois fluir. Assim foi com o mestre Guimarães Rosa ao escrever as Primeiras Estórias. Ali o autor filtrou o que havia de mais original e com a simplicidade que lhe era peculiar reinventou a linguagem da prosa brasileira. Basta compreender a natureza de seus contos, notadamente “O Espelho” (sugestivamente o 11º conto do livro) em que o reflexo real-imaginário é capaz de levar o personagem-narrador a um universo metafísico e como se lhe moldasse a personalidade vai revelando a verdadeira essência da natureza humana, tudo isso sem lançar mão dos artificialismos baratos que só empobrecem a nossa literatura.
O escritor da geração de 45 da nossa produção cultural, juntamente com Clarice Lispector e outros nomes foram capazes de revolucionar o processo de criação literária. De Guimarães a Clarice (para citar apenas os dois mais destacados) é possível observar recursos e elementos novos que se incorporaram à nossa vivência de leituras, como por exemplo: uso de aliterações, cadências métricas (visto que Guimarães rompeu as barreiras entre poesia e prosa), introspecção, neologismos, instantes de epifania (notadamente em Clarice Lispector).
Conhecedor que era de vários idiomas e da cultura de tipos sertanejos, Guimarães Rosa nos legou um estudo rico e apurado de um dos mais importantes processos de formação de palavras – a composição por aglutinação. Além disso, vieram também a valorização dos arcaísmos, eruditismos, hibridismos. Damos-nos conta, então, de que a leitura, imprescindível que é na vida do indivíduo, nos dimensiona para o universo de conhecimento do mundo, de nós mesmos.
O escritor espanhol Miguel de Cervantes é prova inconteste do quanto a literatura pode nos acrescentar. Dom Quixote, sua mais conhecida e ousada obra de ficção é, e continuará sendo, de uma visível e impressionante vitalidade, pois conseguiu resistir à ação do tempo e ser lida nos dias atuais. Portanto, uma obra de arte atemporal.
Além de sucessivas reedições, algumas em comemoração ao quarto centenário de sua publicação, o livro de Cervantes é um refinado escudo de defesa da leitura; mais que isso é um fomentador inabalável desta. Não há leitor potencialmente crítico que não tenha lido ou ouvido falar do melhor livro de literatura universal do mundo, conforme seleção dos maiores críticos em 2002.
Dom Quixote enraizou-se no seio universal com uma estória comovente e engraçada, mas que não se aproxima nenhum pouco do grotesco. Pelo contrário, Dom Quixote é, em essência, uma verdadeira metáfora, capaz de construir outros pontos e/ou elementos de riqueza literária como a intertextualidade. É possível enxergar pontos intertextuais com as histórias de cavalaria medievais de Carlos Magno, Rolando, Lancelote, Percival, Huon, entre outros. Além do mais inclui elementos argumentativos e metalingüísticos.
O livro é todo construído com foco voltado para o processo de formação do leitor, da construção do hábito da leitura, o que o torna ainda mais necessário, pois cumpre diversas funções. Dom Quixote não só capta o leitor de forma a transportá-lo para o universo de suas páginas como o faz reconhecer-se nela – na própria história.
Nos dias de hoje ainda é possível encontrar leitores (in)saciáveis (entenda-se aqui o termo no sentido de querer mais, não no sentido de esgotamento, falta de gosto, desinteresse) e é por isso que ele (o leitor) está sempre em busca dos processos criativos da obra que está lendo. Dom Quixote permite, sem adequação a estudos técnicos, entendermos a lógica de sua criação e sua mensagem. O “Cavaleiro da Triste Figura” como o denominou seu fiel escudeiro foi criado para nos instigar a leitura, sem artificialismos e invenções distorcidas, pois assim como Cervantes; Guimarães e Clarice construíram suas histórias/estórias com o máximo de simplicidade, num jogo em que o leitor é peça e alvo fundamental. Torná-lo potencialmente crítico, ou simplesmente capaz de compreender a mensagem que o livro lhe proporciona é, pois, um compromisso inadiável.