Artigo
O EVANGELHO SEGUNDO PADRE LIRA
“Tenho duas mãos para acolher, acariciar, abençoar e dois pés para escoicear. Quem se aproxima de mim escolhe a opção que quiser”. Com incrível poder de síntese, padre Manoel Lira Parente se autodefine na abertura de um documentário que não chegou a ser realizado. De uma coisa o velho padre tinha certeza: jamais seria uma unanimidade.
Nascido em Bom Jesus do Gurgueia, bem cedo decidiu que queria ser sacerdote. Ordenado em 1945, fez a sua opção preferencial pelos pobres, bem antes de a expressão entrar em voga. E sabia que só poderia quebrar o círculo da miséria por meio da educação. Sem vacilar se fez educador. A fazenda que herdou do pai foi vendida para a construção do Ginásio Dom Inocêncio, em São Raimundo Nonato, em 1948. Dirigido por ele, com mão de ferro, o velho educandário tornou-se um referência no sertão do Piauí.
Padre Lira percebeu, com clareza, que só seria possível mudar aquela realidade adversa por meio da política. Assim,em 1954, elegeu-se prefeito de São Raimundo Nonato. Não foram poucos os obstáculos que enfrentou para chegar, desgastado politicamente, ao final do mandato.
Em vez de desistir da política e cuidar especificamente de sua ação pastoral, procurou o povoado mais distante e mais esquecido de São Raimundo - Curral Novo – para meter-se numa nova empreitada: levar educação e trabalho a um povo que, entre outras agruras, não dispunha de água potável. No início da década de 1960, na aridez do semiárido piauiense, criou a Fundação Ruralista, uma instituição voltada para a educação, na acepção plena do termo. Além de ensinar aquela gente humilde a ler e escrever, ensinou as mulheres sertanejas a bordar, uma fonte de renda num lugar onde qualquer centavo a mais fazia uma enorme diferença.
Com seu “faro” de educador, trouxe de Campinas alguns pedagogos para conhecer a realidade da região e elaborar um material pedagógico ajustável ao sertão piauiense. Mudou o regime das aulas, propiciando aos alunos a oportunidade de estar sempre bem perto da família, ajudando-a a tocar os roçados.
Diante das dificuldades quase intransponíveis, resolveu elevar aquele povoado onde faltava tudo à condição de município. Sonhava alto: queria um município sem analfabetos. Nascia assim Dom Inocêncio em 1988. Prefeito por três gestões, recebeu prêmios e processos. Padre Lira tinha uma enorme dificuldade para lidar com a burocracia que emperra a máquina pública. Tinha muita pressa e queria fazer as coisas à sua maneira. Autoritário, enérgico e exigente, “conquistou” uma legião de desafetos.
Muito do que construiu já foi destruído. Velho, doente e incapaz de dar continuidade aos grandes projetos que idealizou, saiu de cena no dia 13 do mês em curso, amargo e ressentido. Deixou, contudo, um legado que desafiará o poder corrosivo do tempo: o exemplo de educador arrojado.
Fonte:
Cineas Santos |